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  • “Febre – Diário de um Leproso”, Poemas de Klaus Kinski

Foram publicados na Alemanha alguns poemas inéditos de Klaus Kinski, encontrados quarenta anos depois de forma espetacular, e como não poderia deixar de ser, tratando-se de poemas, foram a leilão. Estes estavam em posse de uma médica, casada, que entupia o sanitário com as cartas do amante secreto, com receio que o marido pudesse descobrir mais tarde a infidelidade.

Após a morte da médica, uma misteriosa mulher encarregada de se desfazer dos pertences da falecida, encontra um pacote com as folhas de um Diário de um Leproso. Peter Geyer, admirador de Klaus Kinski e editor do livro, “Febre – Diário de Kinski“, compra o manuscrito em Munique, por três mil e quinhentos marcos. Como estes poemas foram cair nas mãos desta amante é um mistério, uma vez que foram dados como perdidos pelo próprio poeta.

Os poemas foram escritos no início dos anos 50, num pequeno apartamento em Paris, que era dividido com o amigo Thomas Harlan e a namorada Bergell, uma jovem de dezasseis anos condenada à morte por um cancro na laringe. Bergell não era o nome verdadeiro desta jovem, Kinski chamava-a assim em homenagem a uma região na Suíça adorada pelo ator. A jovem vivia nas ruas de Paris, onde o alemão a encontrou deitada num banco, num dia qualquer de Outono, e trouxe-a a meio da noite para o seu minúsculo apartamento.

Ao princípio, este queria cuidar dela como um pai, mas acabou por se apaixonar por aquela criatura fraca, de longos cabelos negros, pele alva, lívida, quase transparente, que tossia, cuspia sangue, tremia e delirava de febre. Imagine-se os três jovens nesse minúsculo recinto, em desordem, escuro, cheirando a mofo.

Klaus Kinski

O amigo Harlan sendo obrigado a presenciar a paixão e loucura do companheiro de quarto, o sofrimento físico da menina, as recitações berrantes dos versos que Kinski escrevia deitado na cama, os delírios de ambos… Com certeza o alemão, que tinha na época vinte e poucos anos, escreveu estes versos inspirados em Bergell. Tomou a dor daquela criatura abandonada e enferma, e transformou-a na sua própria dor.

No entanto, os poemas inéditos de Kinski não acrescentam nada de novo à biografia deste génio inigualável na história cinematográfica. Neles, encontramos a mesma ira e visão apocalíptica rebarbativa que o acompanhou em todas as fases de sua vida. O protagonista de “Aguirre, a Cólera dos Deuses” (1972), expele, em tinta vermelha, dactilografada em papel de forno, a sublevação delirante contra a autoridade constituída e da qual foi uma amostra a autobiografia “Sou tão louco pela sua boca de morango” (1975), título este extraído de um poema do poeta francês François Villon.

Assim como a autobiografia é um violento grito de protesto contra qualquer ordem institucionalizada, contra tabus, contra a sociedade, “Febre – Diário de um Leproso” é uma erupção de paixão, ódio e insurgência, carregado de suavidade e asco. Se Kinski não tivesse sido o constante obstinado e indomável que foi, dono de uma rebeldia nata e violenta, talvez não se tivesse tornado um mito.

“Febre – Diário de um Leproso” está submerso numa atmosfera densa e repetitiva, a metáfora da febre é a preferida do jovem poeta, pois esta aparece várias vezes em diferentes poemas, como este:

Febre

Assim eu imagino o Além

Fenol, gelo e merda.

As pessoas nem se quer têm febre

quando se embriagam do próprio mijo.

Tenho a febre do mundo inteiro nos olhos

E como um jacto de pus sifilítico

A febre negra penetra nua e moribunda

Nos bagos túmidos e desprotegidos do meu coração.

(…)

Não devemos esquecer que trata-se aqui de poemas escritos por um jovem desesperado. Além da repetição das metáforas, existem as constantes imagens hipérboles, caracterizando-lhe o estilo.

  • O Mito de Klaus Kinski

Klaus Günter Karl Nakszynski, nascido em 18 de Outubro de 1926 em Sopot, uma pequena cidade polaca, ficou mais conhecido através da sua atuação singular no cinema. Embora Kinski tenha participado em mais de 130 filmes, pode-se contar pelos dedos aqueles que têm algum valor, e mesmo assim tornou-se um ator incomparável na história do cinema. Foi o talento de fascinar o público, com a atuação inigualável em frente à câmara, que o tornou famoso.

O aspecto físico também contribuía muito para a interpretação de um papel, pois este possuía uma boca grande, o rosto encovado, os gestos alucinados e dos seus grandes olhos azuis emanava um olhar que parecia hipnotizar o público. Era como se realmente possuísse a “febre do mundo inteiro nos olhos” (K. Kinski), a loucura estampada naquele imenso e profundo azul.

Klaus Kinski

Para os realizadores era uma bênção trabalhar com o filho de um pobre e fracassado cantor de óperas, pois este sabia tudo de antemão, possuía um instinto aguçado e era totalmente seguro de si próprio. Era dispensável qualquer sugestão ou orientação, pois sabia exatamente onde estava a câmara, posicionava-se conforme o seu movimento e virava o rosto no preciso momento da câmara começar a filmar. O seu rosto domina toda a tela, marcando a visão do público como um epicentro.

Era uma bênção, mas também uma desgraça trabalhar com esta personalidade complexa e violenta, imprevisivelmente cheio de cólera e ao mesmo tempo tímido. Mas é neste paradoxo que reside a autenticidade deste artista que viveu toda a sua vida em busca da perfeição, do absoluto; que nunca desistiu de lutar contra a mediocridade que o cercava permanentemente. Foram raros os realizadores de cinema que reconheceram e valorizaram o seu talento. Os papéis oferecidos eram, na maioria, insignificantes, e Kinski aceitava qualquer um. Fazia um filme atrás do outro numa ferocidade doentia, filmes que, ele próprio sabia, desde o começo, estavam condenados ao fracasso.

Foi esta flexibilidade, este constante ensaio de interpretação, que o levou a incorporar os personagens. A dedicação e completa concentração no papel a ser interpretado, independente da qualidade do filme ou da capacidade do realizador, intensificaram-lhe o talento, conduzindo o artista à genialidade.

Não percam a “Parte II” deste artigo aqui, porque nós também não…

Miguel Mendes

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