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Porque A Arte Somos Nós

Este texto é transcrito do livro “Biografia Do Filme” (Plátano Editora), do autor Mark Cousins, que para além de escritor, é crítico de cinema, produtor e realizador. Este é colaborador regular de publicações como “Sight And Sound, “Prospect” e “The Times”. Com este texto pretendo dar a conhecer uma visão mais profunda e analítica de um tema cinematográfico mais específico. Este serve de apelo e motivação para a visualização dos filmes abordados, sempre em prol do cinema.

“Na América, Ford, Welles, Hitchcock e Hawks, os mestres que haviam inspirado os melhores textos da crítica francesa e britânica, fizeram os seus filmes mais notáveis com poucos anos de intervalo entre si. A indústria que estes realizadores conheciam dos anos 30 estava a mudar a passo acelerado. Humphrey Bogart, o comediante Oliver Hardy e Von Stroheim, o realizador de “Greed” (“Aves de Rapina”), morreram em 1957. Nesse ano havia seis mil cinemas drive-in no país, que passavam essencialmente filmes insípidos de rock’n’roll, de ficção científica ou de praia. Nada menos que sessenta e cinco por cento dos filmes feitos nos Estados Unidos em 1958 eram produzidos por empresas independentes e, no virar da década, os temas principais tornaram-se mais ousados. Droga, sexo, e racismo tornaram-se os novos tópicos quentes do cinema respeitável, assim como os filmes de terror de Roger Corman e Russ Meyer. A televisão ameaçava o cinema e, ao mesmo tempo, fornecia-lhe novos talentos e estilos. Minnelli, Nicholas Ray e Sirk faziam melodramas que captavam a raiva e a tensão desses anos de Eisenhower.

Contra esta formação cultural na qual a família definia as normas sociais, filmes como “A Desaparecida” (John Ford, 1956), “A Sede do Mal” (Orson Welles, 1958), “A Mulher que Viveu Duas Vezes” (Alfred Hitchcock, 1958) e “Rio Bravo” (Howard Hawks, 1959) abordavam homens isolados de meia-idade e as suas complexas relações com as mulheres. Nesta era da história americana onde as famílias definiam normas sociais, nenhum destes homens pertenciam a alguma. Anderson não considerava “A Desaparecida” a melhor obra de Ford, mas essa opinião é contrariada por muitos outros críticos. A personagem principal do filme, Ethan Edwards, interpretada pelo protagonista-ícone do realizador, John Wayne, é tão desligada da sociedade que é mais associada com a paisagem de westerns, ou aquilo a que o filme chama “o revolver a Terra”. Já andava há tanto tempo sozinho que quase se tornara inumano. A sua busca pela sobrinha, raptada pelos índios, é pautada pela raiva e pelo racismo. Ford não inventou nenhum esquema novo em “A Desaparecida”, mas refinou o seu estilo clássico e, influenciado pela psicologia mais perturbada dos novos westerns do realizador Anthony Mann, aprofundou a caracterização do seu trabalho.

O homem solitário de “A Sede do Mal”, Hank Quinlan, foi interpretado pelo corpulento Welles. Quinlan é um polícia na fronteira México-Estados Unidos mas, tal como Edwards, faz a lei com as suas próprias mãos, ultrapassando os limites da ética. Enquanto Ford fixara o seu estilo, Welles, que tinha apenas quarenta e três anos quando fez “A Sede do Mal”, elaborou as suas técnicas, recorrendo a takes mais longos, inovadores e sem precedentes, câmaras à mão, encenação em profundidade, objectivas com zoom e uma filmagem com objectivas de grande abertura que distorcia a imagem. Ambos os realizadores retratavam a sociedade civilizada, quando as coisas não vão bem, a lei é podre e as pessoas perderam a esperança, mas Welles optou por maravilhar o seu público com uma densidade sonora e visual, quase única no cinema americano. “A Desaparecida” acaba com Edwards a olhar a paisagem intemporal, que veio a tornar-se uma metáfora para a sua vida interior. “A Sede do Mal” acaba como um abjecto Quinlan morto, caído num lodaçal sujo, negligentemente elogiado pela prostituta cigana que recorda o tempo em que ele era vivo.

O protagonista de “A Mulher que Viveu Duas Vezes”, Scottie, está tão obcecado como Edwards e Quinlan e isto obriga-o também a transgredir. Apaixona-se por uma mulher que aparentemente morre, vê uma outra muito parecida com ela e não consegue impedir-se de refazer lentamente a segunda na imagem da primeira. Hitchcock fora influenciado pelo surrealismo de Freud desde os anos 40 e baseou “A Mulher que Viveu Duas Vezes” na teoria do psicanalista sobre sociofilia, a pulsão sexual do objecto do seu desejo. Scottie persegue obsessivamente a segunda mulher, as famosas sequências de perseguição onírica típicas do realizador acompanham-o, reflectindo nas suas breves olhadelas o seu assombro e o seu desejo. (…) Ousará Scottie pedir-lhe que mude de penteado para se parecer ainda mais com a primeira mulher? Ou vestir um fato cinzento igual ao dela? No fundo, Scottie quer dormir com uma pessoa morta. Hitchcock concebeu o seu filme em tons pastel. Até a caracterização dos olhos azuis de James Stewart (Scottie) são acentuados em exagero, de um modo artificial típico dos anos 50. A famosa sequência do sonho leva esta relação entre cor e desejo aos limites do possível. No clímax do filme, Hitchcock fez um travelling à frente, mas, simultaneamente, fez um zoom atrás para garantir que a imagem permanece constante, alongando exageradamente a perspectiva, de modo a aproximar-se da própria vertigem de Scottie. Foi uma das raras vezes que esta técnica foi utilizada e a partir de então tornou-se a base da representação de uma consciência desorientada em filmes como “Tubarão” (Steven Spielberg, 1975).

John Wayne também foi John Chance, o protagonista de “Rio Bravo” – uma personagem muito diferente de Ethan, Hank ou Scottie. Chance é um xerife sem rumo, que luta contra o banditismo da cidade e, tal como Dorothy (Judy Garland) de “O Feiticeiro de Oz“, reúne relutantemente um grupo heterogéneo para ajudar na sua missão. Do grupo fazem parte um comparsa bêbado, um velho desdentado que barafusta como uma galinha, e um jovem pistoleiro arrogante. O filme vale pela ternura e o bom humor manifestados entre estes homens e a única mulher do grupo, uma rapariga da má vida, interpretada por Angie Dickinson. Quando as mãos do seu companheiro bêbado ficam demasiado trémulas para enrolar um cigarro, Chance enrola-o por ele. Na era que produziu os melodramas de Sirk, esta estranha parafernália de homens de uma cidade fronteiriça nos finais do século dezanove foi o modo mais maduro que o cinema americano conseguiu de retratar uma família. Hawks continuou a ser o maior expoente do realismo romântico fechado e, se bem que o filme se passe no Oeste, as qualidades de filme de estúdio de “Rio Bravo” mantiveram-se tão intactas quanto às das suas comédias destrambelhadas como “Duas Feras” (1938) ou “Ter ou Não Ter” (1944). O mundo pode ter mudado, mas o realismo romântico fechado prevaleceu. Hawks conseguiu até que Angie Dickinson repetisse algumas das frases de Lauren Bacall em “Ter ou Não Ter”. No universo paralelo de Hawks, os homens e as mulheres entretêm-nos com as suas jocosas bulhas, e o profissionalismo, a decência e a recusa em zangar-se são sempre lei.”

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