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Porque A Arte Somos Nós

O cinema de terror ocidental tem privilegiado a religião cristã como a sua pedra angular de estudos sobrenaturais. A protagonista autóctone de inúmeras batalhas entre o bem e o mal. Esta é uma observação de constância histórica que constato sem qualquer espanto. Afinal de contas, o cristianismo é a crença dominante deste lado da civilização. Mais curioso é perceber que com o passar das décadas têm-se produzido cada vez mais obras que mesclam o sinal da cruz com horrores cinematográficos. Será isto um sinal de resistência teológica ou de uma crise de fé própria de um mundo cada vez mais secular e convulso?

É uma pergunta que merece investigação e que está cosida no tecido temático de “The Vigil” – em português “The Vigil – O Despertar do Mal” (2019) – por outras razões. O filme que conta a história refrescante de Yakov Ronen (Dave Davis), um judeu que acabara de renunciar ao seu credo e que tem um terrível velório pela frente.

Isto porque, quando morre alguém da religião judaica, um membro da família – ou um estranho, na ausência de parentes dispostos – deve passar a noite de vigia ao cadáver e recitar salmos que vão proteger a alma do falecido de todo o sinistro. Com relutância, e porque não vai bem de finanças, Yakov aceita fazer a vigia do corpo do Sr. Rubin Litvak, passando a noite com a instável presença da Sra. Litvak (Lynn Cohen) no primeiro andar.

Dave Davis (Yakov Ronen)

Escrito e realizado pelo estreante Keith Thomas, é na contenção que reside a sua maior virtude. Contenção espacial, de atores e do número de jumpscares, que são espaçados o suficiente para que o processo que os antecede seja de apreensão. Isto porque a ação desenrola-se com uma quietude inquieta, ocasionalmente provocando pequenos pulos na cadeira. A contribuir para a sua mecânica refinada está um enquadramento meticuloso, que explora devidamente o jogo de luzes e sombras, e uma interpretação expressiva de Dave Davis, com o qual estabelecemos empatia com facilidade.

Parte do tempo estamos sentados com Yakov, a temer pela sua segurança enquanto montamos o puzzle da sua mente. Para este fim, o recurso a analepses fornece-nos informações sobre um episódio fatal da sua vida, que o assombra tanto ou mais do que qualquer aparição alguma vez conseguira. O seu desgosto emocional inflama com a ameaça paranormal eminente. Sendo que a narrativa também tem uma breve aura histórica que remonta às atrocidades nazis e vincula o antagonista às convulsões provocadas pelo Homem. Assim, acima de tudo, o terror de “The Vigil” está cimentado no sofrimento étnico, pessoalizado na personagem central.

Lynn Cohen (Mrs. Litvak)

O que acaba por ser um pouco insatisfatório é a forma como o filme articula estes temas no seu terceiro ato. Apesar da catarse emocional, a sensação que permanece é a de que a jornada do protagonista levou-o, em última instância, a um ponto semelhante àquele em que começou a história. Talvez mais leve na sua consciência e mais pesado no bolso, é certo.

Porém, o enredo não constrói um estudo psicológico denso como vemos em “O Senhor Babadook” (2014), nem é tão sofisticado nos seus sustos como “Under the Shadow” (2016). Se existe redenção, ela é um quanto passageira. Isto, ou a medicação tomou-lhe as sinapses e estamos diante um narrador – e consequentemente um filme – não confiável. É uma possibilidade.

São pequenas histórias como esta, capazes de inovar algumas variáveis de fórmulas conhecidas, que contribuem para sessões mais interessantes e estimulantes – mesmo quando o resultado final não está plenamente calibrado. A pluralidade de contextos e culturas teológicas diversificam o panorama do género e, no entretanto, ensina-nos sobre práticas e curiosidades que nos podem ser alheias. Como tal, o retrato fantasmagórico de Keith Thomas é digno de nota, mais não seja pela capacidade de fazer muito com pouco e deixar-nos embrenhados numa outra liturgia.

Bernardo Freire

Rating: 2.5 out of 4.

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