Ainda na ressaca da 42.ª edição do Festival de Cinema Fantasporto, uma das obras que se destacaram na programação (apesar de não ter sido a mais vista), foi o filme brasileiro “A Praga”, inédito na carreira de José Mojica Marins. O mestre do terror brasileiro, representado por Zé do Caixão – papel que interpreta em muitas das suas obras – começou a filmar “A Praga” em 1980, contudo, a filmagem foi arquivada devido à falta de recursos para o terminar. Em 2007, durante os preparativos de uma grande retrospetiva da obra do cineasta, Mojica e o produtor Eugenio Puppo decidiram terminar a película.
No Fantasporto foi exibida a versão definitiva, um trabalho que Puppo finalizou após a morte do realizador brasileiro, em 2020, tendo adicionado uma nova banda sonora e trabalhado em alguns trechos. Originalmente, “A Praga” foi o episódio 13 do programa de televisão “Além, muito além do além“, exibido no canal Bandeirantes entre 1967 e 1968, e escrito por Rubens Francisco Lucchetti. O resultado final é um importante documento histórico, contudo, para quem não conhece bem a carreira de Mojica Martins, é um engraçado terror de “Classe B”.
Filmado em Super-8, a história inicia-se com Zé do Caixão (José Mojica Marins) a deixar um sério aviso, “Não se deve brincar com o desconhecido.” E o que era este desconhecido? Um casal jovem, Juvenal (Felipe Von Reno) e Marina (Sílvia Gless), estão a viajar pelo interior do Brasil quando Juvenal decide tirar fotografias a uma senhora idosa na sua horta, algo que este se arrependeria para sempre. Revelando ser uma bruxa, esta é interpretada por Wanda Kosmo, escritora e atriz brasileira que consegue criar uma imagem realmente assustadora, muito devido à falta de higiene e traços faciais bastante masculinos da sua personagem.

Após a sinistra bruxa ter lançado uma maldição a Juvenal, da qual este sempre fez troça, uma ferida começa a formar-se na barriga do jovem, resultando numa fome angustiante por carne crua que deve ser constantemente saciada, de forma a parar a dor. Ao longo deste processo, este tem alucinações constantes e toda a sua vida é afetada, quer a nível profissional, quer a nível amoroso. Marina, essencial na sobrevivência de Juvenal, é uma simples personagem “de apoio”, pois a sua única função é servir uma alma em declínio, tendo diálogos pobres e cenas onde a sua atuação não chega sequer a ser positiva. Em muitos momentos, ria-me mais do que me assustava.
Já o namorado de Marina consegue ser um pouco mais convincente. A imagem de Felipe Von Reno, a certa altura claramente fustigada pela purga, contrabalança com os cabelos loiros de Sílvia Gless, conseguindo demonstrar sofrimento e uma certa certa de agressividade – destaco os planos mais aproximados à sua cara. A estratégia desta “Praga” passa mais pelo choque, com cores vivas e algo psicadélicas, principalmente nos delírios de Juvenal (a exploração do campo do sonho por parte de Mojica), bebendo ainda muito do cinema experimental da década de 1970.
A certa altura, a ferida de Juvenal torna-se mais faminta, passando este a delirar ao ponto de matar a esposa, pensando que Marina o ia deixar por causa da sua condição (ou por outro homem). A bruxa, em seguida, reaparece para o coagir a alimentar a ferida com o corpo de Marina. Após um conjunto de cenas bem conseguidas, os esqueletos do casal são descobertos pela polícia meses mais tarde, deitados separados, um ao lado do outro. Na verdade, pouco mais há a dizer sobre a narrativa, pois esta é pouco ambiciosa e só se consegue destacar graças a um certo misticismo e ao bom trabalho de maquilhagem na ferida de Juvenal – o mais assustador em toda “A Praga”.

Em suma, “A Praga” não passa de uma peça perdida no tempo que agrega uma grande aura temporal, mas que como obra é insuficiente em vários parâmetros de realização, caracterização e escrita. Nota-se a falta de recursos de José Mojica Marins, mas acredito sempre que é possível fazer muito com pouco… Compreendendo a vasta carreira de Mojica, é importante o impacto da obra no espectador per si, daí não me focar na tentativa de descodificar algum simbolismo que este filme possa ter no universo do realizador. Mais importante que isso, atribuo significado à cultura tribal brasileira, onde a magia sempre teve um papel fundamental na resposta ao oculto.
No final, foi exibida a curta documental “A Última Praga de Mojica Marins”, onde aqui sim, pudemos estar mais dentro do que foi este trabalho de recuperação em 2007, e compreender as inspirações que José Mojica Marins traz para o seu trabalho, inclusive o Conde Drácula, presente na sua imagem como Zé do Caixão. Este que se assume como sendo um descrente obsessivo, um personagem humana, que não crê em Deus ou no diabo. A peça acaba por ser oportuna, enriquecendo ainda mais com o backstage de algo que se julgava perdido. Contudo, não suficiente para salvar uma obra que consegue puxar mais pelo riso do que pelos gritos.
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