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“After Love” (2020), em português “Depois do Amor“, conta a história de Mary (Joanna Scanlan), que fica viúva após a morte inesperada do seu marido. Um dia após o funeral, descobre que ele tem uma família secreta a 30 km da cidade portuária de Dover, no sudeste de Inglaterra – onde vivia –, nomeadamente, do outro lado do Canal da Mancha, em Calais. O filme é escrito e realizado por Aleem Khan.

Naquela que é a sua primeira longa-metragem, Khan consegue construir uma certa antítese entre dois mundos que, relativamente próximos, correspondem a dois polos opostos, quer geograficamente, quer desde a linguagem até aos costumes sexuais. Mundos esses que, perante a distância que os separa, em muitas partes do globo não seria necessária uma mudança cultural maior que o simples ajuste do sotaque – contudo, aqui não é o caso.

Toda a jornada que Mary atravessa é, no fundo, um exercício de grande desorientação social, repleta de camadas humanas e sentimentais. Neste sentido, em “After Love” temos a oportunidade de vivenciar o sofrimento de alguém que acaba por revelar, acima de tudo, uma tremenda empatia por quem lhe fez mal. Mais em concreto, Geneviève (Nathalie Richard), que se envolve com o seu marido, Ahmed (Nasser Memarzia), mesmo sabendo que este era casado.

Mary (Joanna Scanlan)

No entanto, as duas acabam por desenvolver uma conexão improvável, muito por força daquela que é a dor que as une: com a morte do marido de Mary, ainda que em espectros diferentes, as duas são inundadas de um enorme vazio, algo que as faz questionar a sua vida e o próprio sentido da sua existência. Além disso, pelo meio temos um filho, Solomon (Talid Ariss), um adolescente que se vê metido no meio de uma mentira familiar, dificultando imenso a relação com a sua mãe. Paradoxalmente – tal como com Mary –, Geneviève, após a morte do seu companheiro, aprofunda a relação com Solomon, numa profunda união de dor, espoletando uma imensa ressonância cinematográfica.

Com uma forte consciência política contemporânea, “After Love” explora vários atritos culturais, mantendo um foco doméstico bastante íntimo. Muito por força da sua distribuição, estamos, infelizmente, perante um filme algo limitado na sua ressonância cultural, ou seja, à estreita faixa do sul da Inglaterra e norte de França que explora evocativamente. Contudo, este é repleto de subtilezas e detentor de uma elevada profundidade humana.

Mary comprometeu-se com a fé muçulmana que assumiu por amor ao seu marido, algo que traduz, portanto, todo o comprometimento amoroso que ela revela para com ele. No entanto, após a sua morte, a comunidade muçulmana local apoia profundamente a sua dor, preferindo Mary optar por um isolamento, sendo que não há menção aos seus parentes de sangue, sugerindo um certo rompimento para com estes por conflitos culturais. Tudo isto reafirma a angústia tácita de Aleem Khan, que é capaz de construir um argumento extremamente coeso, do início ao fim.

Geneviève (Nathalie Richard) e Mary (Joanna Scanlan)

Após a morte do seu marido, Mary vai-se deparando com certos fragmentos de uma vida dupla deste, nomeadamente, o cartão de cidadão de uma mulher francesa na sua carteira e mensagens de voz íntimas no seu telemóvel. A partir daí, a curiosidade e angústia de Mary perante estas revelações levam-na ao encontro de Geneviève, apercebendo-se da existência de Solomon, algo que confirma que o relacionamento do seu marido com a amante havia sido bastante duradouro.

Assim, “After Love”, através da autenticidade refinada da sua observação quotidiana, consegue ser uma lufada de ar fresco, a vários níveis, na medida em que muitas das cenas mais vívidas e comoventes do filme centram os detalhes mais comuns da vida doméstica de Mary e do seu próprio relacionamento com a religião. Contudo, sobretudo em pleno segundo ato, sente-se que a obra perde algum ritmo e que cai num certo território genérico.

Ainda assim, nada que retire a esta longa-metragem uma beleza discreta em todos os aspetos, desde as performances até à sua estética extremamente limpa e arejada, que faz com que “After Love” carregue uma bagagem volumosa de sentimentalismo e humanidade, imortalizadas numa elegante leveza cinematográfica.

Tiago Ferreira

Rating: 3 out of 4.

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One thought on ““After Love”: Depois do amor, empatia

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