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O romance “Fogo Morto” (José Olympio Editora, 2003, 403 páginas), de José Lins do Rego (1901-1957) é estupendo! Dividido em três eixos, narra a vida no sertão da Paraíba, numa das regiões mais pobres do Brasil, e tudo gira em torno de uma herdade, com três personagens incrivelmente bem elaborados, sendo dois ordinários nas suas vidinhas comuns, e um atrevido e inconsequente que nos cativa pelos seus atos de bravura.

Iniciemos com o mestre José Amaro. Ele vive com a esposa Sinhá, com a qual mal troca uma palavra, e a filha Marta na casa dos 30 anos que é louca, sofrendo de histeria. Ele trabalha com couro e fabrica selas, arreios, tudo o que leva couro. O seu casebre é um depósito malcheiroso e a miséria companheira. Dá com a língua nos dentes e passa a implicar com o dono da sua propriedade, o coronel Lula, que, ao passar de cabriolet pela estrada, não lhe cumprimenta adequadamente.

O Mestre Amaro está sempre a reclamar, e tem o costume de sair à noite para fazer as suas caminhadas. Desleixado da sua aparência física, com unhas, cabelo e barba enormes, faz fugir as mulheres que o tomam por um lobisomem, e cresce a lenda. Tudo isso só faz desgostar mais o nosso desgraçado personagem, espécie de para-raios para as intempéries da vida. Tolera a amizade do negro José Passarinho, que vive mais bêbado que sóbrio e do impávido Vitorino Carneiro da Cunha, a quem os miúdos caçoam o chamando de Vitorino Papa-Rabo.

O Mestre Amaro terá as suas desfeitas relatadas ao dono da herdade pelo negro Floripes, e aqui uma inimizade nascerá e essa contenda ameaça desandar em tragédia. O relato da miséria é tão pungente que chegamos a sentir o ar fétido do curtume casebre e as moscas a voar em redor.

O escritor brasileiro José Lins do Rego Cavalcanti

Na segunda parte do romance, conhecemos um pouco mais Luís César de Holanda Chacon, vulgo Lula, que é o proprietário da herdade Santa Fé, sendo o forte o engenho de açúcar, que está meio descuidado e não produz o que poderia produzir. Lula é um senhor casado com D. Amélia, que tem também uma irmã meia doida, que fala sozinha e grita de vez em quando. A personalidade de Lula é literária e passiva, tendo vindo da capital da província de Pernambuco, Recife, para casar e herdar a propriedade. Mal sabe lidar com os escravos e com os assuntos práticos do dia-a-dia.

Importante ressaltar o contexto histórico temporal da obra: esta passa-se com o Brasil prestes a admitir a abolição da escravatura e percebe-se em certas herdades a decadência e um país que migraria para a área mais urbana. O coronel Lula, não de patente, é infeliz no seu comando. Tem um amor doentio pela filha e não irá admitir que ela se case com um vagabundo qualquer. Sofre de epilepsia e os seus ataques são constrangedores. Refugia-se na religião e transforma-se num contumaz carola.

Este fica a saber das reiteradas afrontas do Mestre Amaro e manda-o chamar, dando ordens para que saia da sua propriedade. Aqui ficamos a conhecer do caráter do Mestre: de longe ruge como um leão, de perto mia como um gatinho. Sai com as pernas entre o rabo, humilhado. Resta-lhe apenas a admiração pelo bandoleiro cangaceiro António Silvino que confronta a polícia e está entocado na região. Faz-lhe inclusive alguns favores, a um membro da quadrilha.

E eis Vitorino Papa-Rabo. Intrépido, desbocado, valentão, não leva desaforo para casa e leva uma vida mundana. Casado com a paciente Adriana, tem um filho que serve a Marinha no Rio de Janeiro, o seu orgulho, sendo que a esposa tolera as suas maldades. Vitorino percorre todo o romance, pois é amigo tanto de José Amaro quanto de Lula, aliás, um primo dele. Intermedia a questão da desocupação do casebre, fazendo ver ao primo que aquilo era uma injustiça, mas não o consegue convencer.

Vitorino desafia o delegado, é preso, é solto, preso novamente, ridicularizado pelos miúdos que lhe lançam o epíteto Papa-Rabo para seu desespero, atua como advogado, mas percebe-se haver ares quixotescos nas suas ações. Verdadeiramente, um dos personagens mais hilários que encontrei pela vida livresca.

Querem saber como termina o romance? Sugiro o deleite da leitura, vale a pena cada página. Da edição que tenho, algumas pérolas: prefácio de Otto Maria Carpeaux, uma caricatura do autor feita por Tossan em 1951 e a preciosidade da primeira parte do manuscrito, sendo que o autor escrevia à mão, e tudo isso é muito emocionante de se ver. Na certeza de que lerei outros títulos de José Lins do Rego, findo este texto com a alegria de ter travado conhecimento com uma obra tão sublime!

Marcelo Pereira Rodrigues

Rating: 4 out of 4.

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