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Porque A Arte Somos Nós

O final do ano é sinónimo de 12 passas e a tradicional lista dos melhores filmes do ano. Como não gosto de passas, fico-me pelos filmes (e dois ou três copos de espumante). Arbitrárias por natureza, as pautas proporcionam a oportunidade de refletir sobre o ano cinematográfico e quais foram os momentos mais marcantes na sala escura ou no conforto do streaming. Num ano ainda marcado pela crise pandémica, a arte cinematográfica continua a mostrar-se resiliente. Apesar de a conjuntura continuar a empurrar-nos para o sofá, continuo a acreditar na experiência singular de ver um filme em sala, em comunidade. Circunstâncias que continuarei a procurar, sempre que me for possível.

Elegíveis para integrar esta lista estavam todos os filmes com estreia em salas nacionais em 2021, ou que tenham estado disponíveis em qualquer plataforma de streaming nesse mesmo ano. Com dissabor, não consegui ver “Mães Paralelas“, do veterano Pedro Almodóvar nem o aguardado “Licorice Pizza” (2021), de Paul Thomas Anderson, a tempo de a compor. Não entram na corrida “Mais Uma Rodada“, de Thomas Vinterberg nem “First Cow – A Primeira Vaca da América” (2019), de Kelly Reichardt, uma vez que os integrei na lista de 2020, quando utilizava como regra a estreia pública internacional. São, portanto, altíssimas recomendações para quem ainda não teve oportunidade de os ver.

Na mesma linha de pensamento no que ao mérito diz respeito, deixo três menções honrosas que não tiveram espaço na lista que se segue. São eles “A Ilha de Bergman” (2021), drama virtuoso de Mia Hansen-Løve, “Funeral de Estado” (2019), de Sergey Loznitsa, imponente documentário sobre o funeral de Josef Stalin e, por fim, “Pieces of a Woman“, de Kornél Mundruczó. Um filme que mereceu a minha nota máxima quando o abordei, no início do ano, mas que lentamente foi perdendo folgo na minha mente. Continua ótimo, mas não é a obra-prima que me pareceu na primeira instância. Mea culpa.

“In the Same Breath”

10.º “In the Same Breath”, Nanfu Wang – Documentário

O cinema documental tem inquirido sobre as repercussões da pandemia de COVID-19 assim que começaram a surgir os primeiros casos. Alguns evidenciam os isolamentos em primeira mão, outros testemunham o pânico vivido nos hospitais quando os corpos começaram a colapsar. “In the Same Breath”, com uma abordagem mais macro, justapõe, de forma incisiva e elucidativa, a resposta da China e dos Estados Unidos aquando o primeiro impacto do vírus. Pelo caminho, a cineasta Nanfu Wang revela que, embora as políticas dos países sejam deveras diferentes, a incapacidade e negligência na resposta à crise sanitária foi a mesma. Um ponto de vista fundamental, numa altura em que ainda existem mais perguntas do que respostas.

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“Spencer”

9.º “Spencer”, Pablo Larraín – Biografia, Drama

A tremenda interpretação central de Kristen Stewart no papel da “Princesa do Povo” é apenas parte da razão que justifica a visualização de “Spencer”. Mais interessado em moldar um estudo de personagem simbólico do que a representar um retrato veraz de Diana, o filme adquire contornos poéticos. A realização de Larraín é onírica, asfixiante e hipnotizante. Não apenas visualmente, como também a nível auditivo. O compositor Jonny Greenwood, por meio de cordas latejantes e notas de jazz, capta os sentimentos opressivos da protagonista. Alguém que anseia por interações humanas, em vez da persistente tirania da tradição real.

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“Février”

8.º “Février” (“February”), Kamen Kalev – Drama

Um filme sobre a vida de um homem com oito, dezoito e oitenta e dois anos. Com uma estreia tão discreta como a sua sinopse, “Février” ocupa um espaço cinematográfico puro e intacto. Constrangido ao pano de fundo da Bulgária rural, o cineasta Kamen Kalev concentra-se na existência mundana e solitária de Petar. Um pastor que encara a natureza como o seu habitat natural. O recinto ideal para a direção de fotografia captar planos evocativos, emoldurados por cantos arredondados e bordas gastas – artifício que cria um efeito nostálgico. Ocasionalmente lírico e sempre reflexivo, o drama surge, não por acasos ou conflitos, mas pela aceitação da vida em comunhão com a substância do ambiente.

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“Quo Vadis, Aida?”

7.º “Quo Vadis, Aida?”, Jasmila Zbanic – Drama, História, Guerra

Nomeado para o Óscar de Melhor Filme Internacional, o drama histórico “Quo Vadis, Aida?” retrata o massacre de Srebrenica, na Bósnia, em 1995. Contudo, é através de uma lente humana que testemunhamos esta história de horror humano. Realizada por Jasmila Zbanic, a longa-metragem é tão específica quão universal: uma mãe (Jasna Djuricic, a âncora emocional da narrativa) tenta proteger a sua família das atrocidades da guerra. No processo, o auxílio das Nações Unidas não vai além de uma triste fachada. Devastador no retrato do desespero, a impotência e a injustiça, o filme vale tanto pela sua destreza cinematográfica como pela reconstrução histórica de uma tragédia que não se pode voltar a repetir.

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“Nomadland”

6.º “Nomadland”, Chloé Zhao – Drama

A vastidão das terras baldias norte-americanas, o piano reconfortante de Ludovico Einaudi e o trabalho ímpar de Frances McDormand diante da câmara são os aspetos que saltam à memória quando penso em “Nomadland”. Reconhecido pela Academia com o Óscar de Melhor Filme, entre outros, o drama humanístico de Chloé Zhao centra-se na jornada de Fern, uma nómada dos tempos modernos. Os contactos que faz pelo caminho têm subjacente uma frustração com o capitalismo. No entanto, no coração da longa-metragem palpita a partilha de experiências como a perda, a solidão e o companheirismo. A voz de uma América esquecida, a não perder de ouvidos.

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“The Power of the Dog”

5.º “The Power of the Dog”, Jane Campion – Drama, Romance, Western

Com a era de ouro dos westerns no passado, importa sublinhar quando uma estreia consegue oferecer uma perspetiva fresca e inovadora ao género. É o caso de “The Power of the Dog”, da cineasta Jane Campion. Uma história que contrapõe as atitudes de dois homens (Phil e Peter) para tecer um poderoso comentário sobre masculinidade tóxica. O cenário montanhoso de Montana, em 1925, serve o seu propósito pitoresco e isolador. Absorver os panoramas torna-se, assim, tão relevante para apreciar a obra como a interpretação dos detalhes narrativos que a edificam.

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“The Green Knight”

4.º “The Green Knight”, David Lowery – Aventura, Drama, Fantasia

Porquê grandeza? Porquê que a bondade não é suficiente?” – Essel

Inspirado num poema medieval, o cineasta David Lowery adapta a fantástica lenda do Rei Artur por intermédio do seu imaturo sobrinho, Sir Gawain. O protagonista que enfrenta, no dia de Natal, o Cavaleiro Verde. Sedento por notoriedade e aprovação da távola redonda, as consequências dos seus atos fazem-no embarcar numa viagem surrealista e obscura. Pelo caminho, desenvolve-se uma narrativa de amadurecimento pessoal que tem tanto de místico como de ambíguo. A direção de fotografia é bastante intencional na demonstração do cenário expansivo ou na experimentação. Um drama de valores vagaroso, com planos longos e meditativos, que convidam à reflexão durante a própria visualização.

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“Raya and the Last Dragon”

3.º “Raya and the Last Dragon”, Don Hall, Carlos López Estrada, Paul Briggs, John Ripa – Animação, Ação, Aventura

Exemplarmente animado e intemporal nos valores que transmite, “Raya and the Last Dragon” é um triunfo por parte dos estúdios da Disney. Um conto clássico de traição e esperança que mistura dinâmicas comunitárias deveras contemporâneas – diferentes povos devem pôr de parte as suas diferenças para enfrentar uma ameaça comum. Em substituição das típicas sequências musicais, a emoção irrompe através da coreografia e enquadramentos fotográficos da ação digital. A missão da narrativa é aventureira e confere o pretexto ideal para visitarmos diversos pontos geográficos, onde as personagens, apesar de terem costumes diferentes, vivem sob o mesmo céu.

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“Dorogie tovarishchi”

2.º “Dorogie tovarishchi” (“Dear Comrades!”), Andrey Konchalovskiy – Drama, História

União Soviética, 1962. A greve dos trabalhadores de uma fábrica de construção de locomotivas em Novocherkassk terminou em massacre. Os eventos são ancorados pela perspetiva de Lyudmila (Yuliya Vysotskaya, fantástica no papel) que exerce funções no comité local do Partido Comunista. Devota à cegueira ideológica do seu país, é com brutal espanto que encara os disparos anónimos do KGB ao seu próprio povo e o desaparecimento da sua filha.

O drama histórico de Andrey Konchalovskiy é-nos apresentado com uma estética monocromática e tela em formato 4:3, caracterizando tanto uma marca temporal, como a repressão dos eventos. Todavia, o impacto de “Dorogie tovarishchi” reside no facto de não se limitar a recriar (é, inclusive, cinematograficamente elegante no retrato da violência) um episódio negro na infame história da União Soviética. Muito pela forma como, no mínimo, desencadeia uma cuidada reavaliação de valores ideológicos. É cinema de primeira linha.

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“Titane”

1.º “Titane”, Julia Ducournau – Drama, Terror, Ficção Científica

Irreverente, chocante, vibrante e sensual são adjetivos que encaixam bem em qualquer descrição do vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes, “Titane”. Têm sido, inclusive, bastante utilizadas para pintar manchetes fáceis. Não seria, contudo, justo, ficar-me pelo comentário superficial. A longa-metragem da cineasta Julia Ducournau faz proveito dos códigos do cinema de terror para contar uma história de amor nada ortodoxa. A mecanofilia é interpretativa. As convulsões da identidade de género são provocadoras. Não é um filme de conforto, mas sim um objeto de cinema visceral que desafia tanto quanto entretém. Cumprindo, assim, a notável tarefa de inquietar enquanto encara com empatia dois protagonistas solitários (Alexia e Vincent). O que mais pedir do melhor filme do ano?

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Podem ver e ouvir as escolhas do Bernardo aqui, assim como os 10 Melhores Filmes de 2021 para o Diogo Vieira e o Tiago Ferreira!

Bernardo Freire

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