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Porque A Arte Somos Nós

viva o rock brasileiro #10

O que deve uma banda fazer após lançar um excelente álbum? Lançar um melhor, e que pelo menos seguisse no rabo do cometa “Cabeça Dinossauro“. Em 1987, os Titãs lançam “Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas”.

Lado A

Todo mundo quer amor

Comida

O Inimigo

Corações e Mentes

Diversão

Infelizmente

Lado B

Jesus não tem dentes no país dos banguelas

Mentiras

Desordem

Lugar nenhum

Armas pra lutar

Nome aos bois

Lembro-me de ouvir a primeira faixa gritada por Arnaldo Antunes e ficar admirado com a sequência rápida de “Quem tem pinto saco boca bunda cu buceta quer amor“. Cantada, passava quase despercebida, mas lida e refletida, a minha tia censurava-me a leitura do encarte. Comida é uma letra para lá de bacana, uma vez que apregoa que devemos alimentar não apenas o corpo, matando a fome e a sede, mas a alma, nutrindo-a de arte e cultura.

O Inimigo é uma canção arrastada e que afirma que às vezes somos os nossos piores inimigos. Corações e mentes, cantada pela voz rascante de Sérgio Britto, é um rock agitado e dançante. Diversão sugere-nos que nem sempre os divertimentos nos afastam das dores e da solidão, na dialética de se estar sóbrio ou ébrio. Infelizmente é uma letra tristonha, apontando para uma vida sem sentido e que não levará a nada, afirmando que o fim do indivíduo será o cemitério com flores postas eventualmente aos seus pés. Um lado A bem robusto.

O lado B traz a faixa-título, e do que pude interpretar, trata-se de uma frase proverbial do tipo “Em terra de cego quem tem um olho é rei”. Aqui a coisa é mais realista: “Jesus não tem dentes no país dos banguelas” (a letra resume-se a esse bordão, e certamente afirma que Jesus não é mais do que ninguém, meio ateia como Igreja, do disco anterior). Mentiras é demasiado realista, uma espécie de psicologia que busca nas relações interpessoais a explicação para tantas verdades ocultas. E Desordem é simplesmente realista demais, um género de telejornalismo que explica a situação do país nos versos que, infelizmente, se mantêm atuais até aos nossos dias. Vai assim a letra:

Os presos fogem do presídio,

Imagens na televisão.

Mais uma briga de torcidas,

Acaba tudo em confusão.

A multidão enfurecida

Queimou os carros da polícia.

Os presos fogem do controle,

Mas que loucura esta nação!

Não é tentar o suicídio

Querer andar na contramão?

Quem quer manter a ordem?

Quem quer criar desordem?

Não sei se existe mais justiça,

Nem quando é pelas próprias mãos.

População enlouquecida,

Começa então o linchamento.

Não sei se tudo vai arder

Como algum líquido inflamável,

O que mais pode acontecer

Num país pobre e miserável?

E ainda pode se encontrar

Quem acredite no futuro…

Quem quer manter a ordem?

Quem quer criar desordem?

É seu dever manter a ordem

É seu dever de cidadão

Mas o que é criar desordem,

Quem é que diz o que é ou não?

São sempre os mesmos governantes,

Os mesmos que lucraram antes.

Os sindicatos fazem greve

Porque ninguém é consultado,

Pois tudo tem que virar óleo

Pra por na máquina do estado.

Quem quer manter a ordem?

Quem quer criar desordem?

Para além de um pop-rock alternativo, os Titãs ao longo da sua carreira já exploraram estilos musicais como new wave, punk rock ou grunge

Contundente, não? Cantada por Sérgio Britto, a música é de Britto, Marcelo Fromer e Charles Gavin. Lugar nenhum flerta com uma anarquia apátrida que apregoa que o indivíduo não pertence a qualquer nacionalidade, seja ela carioca, paulista, portuguesa ou japonesa. A voz gritada de Arnaldo dá o peso da medida do brado.

Armas pra lutar é um rock rebelde cantado por Branco Mello e Nome aos bois revela-se de uma inteligência só: uma lista de nomes execráveis, pelo menos da conceção do conjunto, e muita polémica ao citar algumas personalidades vivas. Nando Reis canta com a sua voz aveludada e forte, e vale a pena pesquisar cada um destes agraciados: Hitler, Papa Doc, Pinochet, Reverendo Moon, Dulcídio Wanderley Bosquila, Garrastazu, Gil Gomes, General Custer e vários outros.

Este disco, somado ao anterior, proporcionou excelentes espetáculos pelo país afora, assim como uma excelente cobertura da imprensa e lembro-me de, no ano seguinte, ter ouvido uma professora dizer que não trocaria o Roberto Carlos por um conjunto que apregoava que “Bebida é água, comida é pasto.” Claro que respeitei o poder da autoridade, mas compreendi que ela não havia entendido nada. Nem tudo é linear e objetivo, fui aprendendo eu com o passar do tempo, e ainda bem que os Titãs continuavam a nutrir o meu espírito crítico.

Marcelo Pereira Rodrigues

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One thought on ““Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas”, Titãs: Segue a trilha do sucesso anterior

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