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A maré esbate com estrondo no mais recente filme protagonizado por Jason Momoa, o ator que está a tentar levar a onda que apanhou em “Aquaman” (2018) a bom porto. Com o fator popularidade garantido a prazo, resta-lhe estar presente nos filmes certos, com os papéis adequados. Evocando, de preferência, a presença física pela qual se distingue. Uma carta que “Sweet Girl”, uma produção da Netflix, leva à mesa para fins pouco mais que desastrosos. Realizado pelo estreante Brian Andrew Mendoza, o thriller que tem como maior traço de personalidade a vingança, denota uma tremenda incapacidade em garantir suspense cumulativo ou até o mais elementar dos entretenimentos.

Passo à explicação superficial da narrativa. Momoa é Ray Cooper, um devoto homem de família que vê a sua esposa perder a batalha contra o cancro pouco depois de um fármaco potencialmente esperançoso ter sido retirado do mercado (interesses financeiros, especula-se). A raiva que sente é mantida em check até a um encontro mortífero que seria o princípio da descoberta da verdade para Ray. Em seu turno, o evento encaminha-o, a par com a sua filha, Rachel Cooper (Isabela Merced), para a turbulenta estrada da retribuição.

Jason Momoa (Ray Cooper) e Isabela Merced (Rachel Cooper)

O argumento é assinado em colaboração por Gregg Hurwitz e Philip Eisner e constitui um dos problemas esmagadores da longa-metragem. Embora a ideia base seja coerente, a progressão da narrativa no tempo torna infalíveis as falhas de estrutura e de ritmo. Com acréscimos no que diz respeito à carga dramática diminuta e à triste inverosimilhança dos incidentes – inclusive uma reviravolta que fez girar a história 180º, assim como a minha cabeça em direção ao relógio: faltava mais tempo para terminar do que gostaria.

Quando me refiro à construção do enredo, as insuficiências são ao nível do que “Sweet Girl” faz com o tempo que lhe pertence. A título de exemplo, a cena de ação que nos faz transitar do primeiro para o segundo ato tem como fim empolgar e envolver. Não fosse a coreografia descoordenada e os movimentos básicos, podia ter cumprido a missão. Tinha a possibilidade de se redimir posteriormente, mas a rota do filme fá-lo trilhar mais por meio de tentativas de construção da relação entre pai e filha, e menos pelos embates físicos que podiam ter dado a Momoa mais oportunidades para se evidenciar.

Esta aposta no pathos revela-se infrutífera porque em matéria de foco a desorganização é a palavra de ordem. Ao desenvolver um pouco de ação, uma pitada de espionagem e uma fatia de drama, sem uma espinha dorsal que suporte a solidez da história e os elementos que a compõe, a narrativa torna-se rapidamente pretensiosa e seca. Não tem a perspicácia moral de um thriller como “Em Nome da Vingança” (2002) nem a apetência estilística de “Kill Bill” (2003 – 2004). É certo que os filmes que enunciei, de Park Chan-Wook e Quentin Tarantino, respetivamente, estão enquadrados no cinema de autor e como tal estão moldados para cumprir outros objetivos comerciais. Mesmo a julgar por parâmetros mainstream, “Sweet Girl” é irrecomendável.

Jason Mamoa, para além de ator em “Sweet Girl”, é também um dos produtores da longa-metragem da Netflix

Nem no tópico da técnica consegue despertar alguma curiosidade. A direção de fotografia, cortesia de Barry Ackroyd, é desinspirada e banal. Ao ponto de pensar que seria mais interessante ler uma versão do mesmo em romance do que absorvê-lo num ecrã. Em termos da relação entre o som e o espaço, em certos momentos ouvimos conversas com clareza quando a câmara está posicionada à distância. Um conflito sensorial sintomático do descuido da produção. Por extensão, o plot twist, que faz a história transitar do segundo para o terceiro ato, é de um desespero e de uma incoerência tal, que chamá-lo de forçado seria um elogio.

Se de facto o enredo fosse minimamente envolvente, alguns fatores mecânicos podiam facilmente ter menos importância. Feitas as contas, até “O Mundo a Seus Pés” (1941) tem um dos maiores buracos no enredo da história do cinema: o facto de ninguém estar presente no espaço onde Charles Foster Kane sucumbe à morte. Como tal, quem poderia ter ouvido o sussurro “rosebud“? Pois é. Só que nada disto interessa porque estamos a falar de uma obra-prima artística. Cinema envolvente, revolucionário quer ao nível da engenharia de filmar como de escrita criativa. Com o devido bom senso, não choca que “Sweet Girl” esteja a galáxias de distância do filme de Orson Welles, mas aborrece que esteja bastante abaixo dos mínimos olímpicos.

Bernardo Freire

Rating: 1 out of 4.

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3 thoughts on ““Sweet Girl”: Do desânimo ao desespero

  1. Acerca de Citizen Kane: é um equívoco comum que ninguém estava na sala quando Kane disse a sua palavra lendária, Rosebud… mas o próprio guião contradiz esta ideia. No final do filme, quando o repórter Mr. Thompson pergunta a Raymond sobre o significado de Rosebud, Raymond afirma que ouviu Kane dizer Rosebud logo após a sua segunda mulher deixar Xanadu e, acrescenta, “that other time, too.” Nunca vemos Raymond na sala durante a cena de abertura do filme quando Kane morre, mas o diálogo exige (como a lógica) que *alguém* ouviu as últimas palavras de Kane, e Raymond parece ter sido aquela testemunha – “that other time, too” é uma referência ao momento final de Kane.

    1. A cena foi escrita com a enfermeira no quarto. No entanto aquando as filmagens, para efeito dramático, Welles filmou a enfermeira a entrar no quarto, refletida pelo vidro – um shot icónico. Como não há nenhum plano geral do quarto, a substância informativa da cena não indica a presença de alguém no quarto no momento do suspiro final. Em conclusão, imageticamente falando, o buraco narrativo existe. O que se diz posteriormente para tentar mitigar o facto de não estar ninguém no quarto naquele momento, não passa disso mesmo: uma tentativa de minimizar o problema.

      P.S: Feliz por estar a discutir Citizen Kane, em vez de Sweet Girl.

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