Ela, uma escritora de livros relevante. Ele, um diretor de teatro mais alternativo. Morando no subúrbio de Nova Iorque, e na faixa dos 45 anos, possuem uma moradia comum enriquecida com inúmeros livros espalhados até à cabeceira e como missão cuidam de dois cães que mais parecem bezerros. A crise de meia idade para ambos ocorre a partir do momento em que decidem ter um filho. Como plano alternativo e paralelo, tentam adotar, mas é chegada a hora de reiteradas visitas médicas na tentativa de engravidarem (sim, o casal unido deve necessariamente engravidar junto).
Esta é a premissa básica de “Private Life”, título em português “Vida Privada“, um drama de 2h07min que deixa escapar nas entrelinhas ótimas pitadas de humor. Realizado por Tamara Jenkins, protagonizado por Kathryn Hahn e Paul Giamatti (este rouba a cena), na companhia de Kayli Carter, Siobhan Fallon Hogan e outros, é uma história que nos relata alguns absurdos da existência.
Como ter que se submeter a uma antessala de uma clínica de esterilização sem muita privacidade, com o deprimente ato de se estar numa minúscula sala a posteriori assistindo a desempenhos brilhantes de filmes porno na estimulação do sémen, e com registado tédio Richard (interpretado por Giamatti) ultrapassa essa seção. Uma das cenas mais engraçadas é quando ele parte sem querer o comando do aparelho de TV, tendo que se sujeitar a ouvir gritos e gemidos eróticos.

Se sémen há, o espermatozoide parece ter tirado férias. Mas nada que outras seções médicas não possam salvar, e só de assistir a tanto esforço para se ter um filho deu-me uma canseira danada. Procedimentos na casa dos 10 mil dólares e assim a coisa anda, a clínica sempre oferece novas possibilidades, desde que religiosamente compradas. Pensei em Freud naquele momento: o quanto lutamos para trazer ao mundo o nosso potencial assassino, vide “O Complexo de Édipo”.
Rachel (Hahn) é mesmo uma excelente atriz, pois entrega-se ao papel da intelectualizada e neurasténica escritora que está dividida entre o desejo de ser mãe, talvez por convenções sociais, e as suas chatices e implicâncias, fazendo o perfil de tia solteirona. Aliás, o casal recebe a visita de uma sobrinha meio torta (na verdade não é de facto) e esse viço da juventude contrasta com o enfado da vida adulta. Ponderando técnicas de inseminação, o casal atreve-se a sondar se Sadie estaria disposta a doar óvulos para a técnica.
Há dilemas éticos implicados, mas a ver a forma leve com que os jovens percebem o mundo, fica assim acertado, com as confusões advindas de um jantar no Dia de Ação de Graças quando Sadie, bebendo algumas taças de vinho a mais, dá com a língua nos dentes e toda aquela prévia de conversa já nos antecipa a confusão. E bota confusão nisso. A sua mãe, Cynthia (convincentemente interpretada por Molly Shannon), faz o típico papel de uma mãe comum, tendo o amparo do seu segundo marido, Charlie Grimes.

Alguns bastidores deste filme apontam para o crescente distanciamento entre o casal, o facto de Richard estar a ler o iconoclasta escritor norueguês Karl Ove Knausgård e a exemplo o livro “Minha Luta” deste, a luta do casal será manter a sanidade física e emocional, nesta tão desgastante batalha. Reiterando o humor na película lançada em 2018, a trama termina em aporia e isso é que é o mais “barato” da reflexão.
Hoje o mundo ocidental vê o índice de fertilidade cair consideravelmente, e acerca das decisões de quando somos jovens, notadamente preocupados com a evolução da carreira, e que bom que as mulheres escaparam destes grilhões da submissão e da maternidade, é interessante entendermos que uma decisão entre o casal em não ter filhos pode ser quebrada pelo tédio da rotina quando não conseguimos mais aturar a cara do nosso parceiro(a). Pois foi o próprio Richard que desabafou à mulher que não tinham relações sexuais há muitos meses, sendo que só lhe via o rabo para aplicar injeções de hormonas.
Simples e sem muitas reviravoltas, “Private Life” é uma descrição de atitudes reais e concretas e duas horas muito bem passadas a aprender com mais uma bela história.
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