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“A crioulada reuniu-se num magote, e, alçando as mãos e tripudiando, começou de gritar numa melopeia cadente, rítmica, afinada:

— Aí vem nhonhô! Nhonhô aí vem!

— Cala o bico, canalha! gritou Barbosa, cruzando nos lábios o índice de mão direita.

A crioulada, afeita a obedecer, emudeceu”


“A Carne”

O romance “A Carne”, de Júlio Ribeiro (Editora Círculo do Livro, 170 páginas) é um livro de época bastante interessante. Publicado em 1888, serve como retrato de uma época e exige-se a adequada contextualização, sob pena de levarmos o seu autor ao banco dos réus da patrulha ideológica do politicamente correto. O Brasil vivia os últimos anos de escravidão, pelo menos a oficial, e o cenário do livro passa-se numa fazenda do interior de São Paulo, quando a hoje grande megalópole possuía cerca de 60 mil habitantes apenas.

Vale a pena esclarecer que o título em caixa alta foi intencional, pois, toda vez que ele utiliza a palavra no romance ela vem com essa distinção, como se nos quisesse gritar a importância da sensação na nossa alma.

A novela centra-se na relação entre Helena e Barbosa. Esta é uma rapariga órfã e rica que acaba de se instalar na fazenda de um grande amigo do seu pai, e lá conhece o estouvado filho dele, que se havia separado, ilustrado por já ter estado na Europa e que cultivava o hábito da leitura e dos estudos. Ateu, fisiologista até à medula e descrente do amor que leva ao enfadonho casamento, com todas as suas instituições estúpidas, este é Barbosa. Helena possui também esses dotes intelectuais, embora não tivesse ido ao estrangeiro ainda. Ele na casa dos 45 anos, ela mocinha.

O que começa como uma admiração intelectual mútua logo se traduz num relacionamento sexual intenso, daí a CARNE que sempre se vem manifestar ao longo desta trama. O cenário da fazenda é-me muito caro, pois em criança presenciei de perto toda a beleza esplendorosa de uma casa no campo. As cenas da moagem da cana de açúcar, o estágio da garapa até se transformar em açúcar é belíssima!

O único senão do livro é a elaboração pedante em algumas passagens, a discrição pormenorizada de elementos da natureza e ao lermos as primeiras cartas trocadas pelos apaixonados, quando este tem que viajar de modo a tratar de questões comerciais em Santos, a verborragia aborrecida quase me fez dormir. Mas vencida essa contrariedade, a leitura apresentou-se agradável. A esclarecer que o autor era um notável gramático e filólogo, daí certamente a sua inspiração para esbanjar erudição.

O escritor e gramático brasileiro Júlio César Ribeiro Vaughan

Acerca da escravidão, somos apresentados à comunidade dos pretos, e são várias as passagens em que os mesmos são subjugados como meros animais irracionais. Na citação publicada acima, temos uma noção. Assim, o personagem Joaquim Cambinda, um preto velho imprestável e alforriado na casa dos 80 anos, é descrito com toda a sua teia de maldades, assassinando outros pretos e até tentando fazer os seus feitiços contra os seus patrões. A cena em que ele é justiçado é agonizante e feita aquela sentença, toca-se a vida como era antes. Na carreira de jornalista, Júlio Ribeiro foi um entusiasta da Abolição da Escravatura e enquanto dirigia os seus jornais, não aceitava publicidades acerca de informes de negros fugidos.

As cenas das caçadas são muito bem-feitas e eu mesmo tive o cuidado de não incorrer no anacronismo. Pois, defensor dos animais que sou, embrulhou-me o estômago ver Helena disparar contra jacus, araras e tucanos, ceifando a vida a mais de 20 aves. Nesse momento, desejei um mal à personagem e acreditem, ele se deu. A volúvel mocinha é picada por uma cascavel e fica entre a vida e a morte. Aludi a volúvel e essa é a característica principal dessa rapariga. Perde a virgindade com Manduca (apelido de Barbosa) e desculpem-me as pudicas leitoras do Barrete, no início, e como sempre, parece aquelas que estão com vontade de dar, mas com medo de doer.

Um desfecho surpreendente nos aguarda, num livro que entrega aquilo que promete, essa CARNE exposta e no cio, numa mistura entre homens e natureza, sendo o sémen que sai do pénis correlato à seiva que circula pelo caule, enfim, uma leitura aprazível, afora alguns momentos aborrecidos, e o certo é que fiquei contente por conhecer mais um escritor brasileiro que tão bem retrata parte da nossa história. Findo com uma citação que julguei bastante interessante, a correlacionar a nossa natureza e o infinito:

Quando o homem para e contempla das alturas o escalejar da serrania, o vale cortado de algares, a planície, o litoral, a linha do mar a confundir-se com o céu; quando atenta nas forças enormes que entram em jogo no âmago e na crosta da terra, na água que a banha, no ar que a comprime, na luz que a ilumina, na vida que a rói; quando por generalização alarga o quadro e considera o planeta inteiro; quando dele passa para os planetas irmãos, para o sol, centro do sistema;

quando conclui, por indução irrecusável, que esse sol, esse centro é por sua vez lua, satélite humilde de um astro monstruosamente imane, afogado na vastidão, desconhecido, incognoscível para todo o sempre; quando pensa que ainda esse astro gravita em torno de um outro que gravita em torno de um outro; quando reflete em que tudo isso é uma cena minúscula do drama da vida universal, e que o teatro espantosamente incompreensível dessa evolução intérmina é uma nesguinha insignificante da imensidade do espaço, o homem sente-se mesquinho, sente-se pó, sente-se átomo, e, vencido, esmagado pelo infinito, só se compraz na ideia do não ser, na ideia do aniquilamento.

Marcelo Pereira Rodrigues

Rating: 3 out of 4.

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