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Tal como os traumas vêm nas mais variadas formas e feitios, o mesmo acontece com os mecanismos que utilizamos para os enfrentar. Na magnífica estreia da cineasta britânica Rose Glass, o choque é confortado com o fanatismo religioso. Tema que está premente no núcleo do drama horripilante “Saint Maud”. Um estudo de personagem que observa com devoção uma jovem mulher que leva a cabo uma epifania até às últimas consequências. Uma obra fílmica que será, certamente, à prova do tempo.

Morfydd Clark é Maud. Uma enfermeira de cuidados paliativos que na primeira cena encontra-se sentada no canto de um quarto de hospital, com as mãos ensanguentadas. À sua frente, uma maca com um corpo imóvel reforça os indícios de uma catástrofe fresca. A pontuar a cena, uma barata robusta surge no teto, para estranha admiração de Maud. O título do filme surge de rompante, rasgando o fundo preto com um letreiro branco, cobrindo a totalidade o ecrã.

Morfydd Clark (Saint Maud)

Traumatizada com a situação obscura, a enfermeira fecha-se na sua mente e abre o coração a Deus. Vive reclusa num apartamento pouco aprimorado e continua a fazer cuidados paliativos, desta vez em serviço privado. Trabalha a cargo de Amanda (Jennifer Ehle), uma ex-bailarina famosa que sofre de um linfoma grave e tem os meses contados. Munida de intenções obsessivas, Maud determina-se a si própria a não tratar apenas do corpo e mente de Amanda, mas também salvar a sua alma.

A história é enganosamente simples. Rose Glass dedica-se a densificar o argumento com propriedades que vão da repressão sexual à exclusão social. Nessa medida, e por evocar com regularidade o estado psíquico deturpado da protagonista, “Repulsa” (1965) é um filme que salta à vista aquando da visualização. Contudo, não é o único filme de terror realizado por Roman Polanski que equaciona destas características. De outro modo, a composição musical de Adam Janota Bzowski podia integrar perfeitamente o filme “A Semente do Diabo” (1968), acentuando o delírio interior da protagonista e a suspeita ambígua de que uma força maligna pode estar por detrás dos seus comportamentos mais sinistros.

Cenas que marcam uma viagem pela mente de Saint Maud

Esta dimensão de horror da banda sonora é bastante relevante, pois os fundamentos dramáticos da narrativa mantêm a história maioritariamente com os pés na terra. Uma vez que o ponto de vista da protagonista é o foco principal, as partidas da cabeça de Maud, aliadas à cegueira ideológica, manifestam-se visualmente através de movimentos desumanos e comportamentos de êxtase.

Um trabalho demonstrativo da atriz Morfydd Clark, que é tão versátil entre cenas como durante as mesmas. Quando se trata de close-ups, a intensidade de alguns momentos chega a traçar paralelos com a atriz Maria Falconetti em “A Paixão de Joana d’Arc” (1928). Com toda a mestria e mais alguma dos envolvidos, sem a entrega de Clark, “Saint Maud” estava condenado.

No entanto, a obra nutre sentimentos que estão na base de muitos dos meus filmes de terror de eleição, tais como “O Exorcista” (1973), “Kairo” (2001) ou “Águas Passadas” (2002). Profundos sentidos de solidão, tristeza e inquietação, que executados com perícia resultam em empatia. Neste caso particular, a religião funciona como um penso rápido aplicado a uma grande e profunda ferida, incapacitando a sua mente austera de processar eventos com razoabilidade e senso de autoajuda. Uma ironia particularmente gritante quando a protagonista ganha a vida a tratar de terceiros.

Bernardo Freire

Rating: 4 out of 4.

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