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Porque A Arte Somos Nós

“Shirley” (2020) é, objetivamente, uma agradável surpresa, sobretudo porque nos consegue guiar numa viagem sem fim pelos limites da nossa criatividade, do nosso universo de pensamento, fazendo-o bem, praticamente do início ao fim. Se as caracterizações são verdadeiramente convincentes, o argumento é uma lufada de ar fresco e de intelectualidade. O tom da narrativa acompanha os ritmos exuberantes da sua banda-sonora, sem nunca descurar o entretenimento que, sobretudo, o mistério e a intriga mais profunda do filme disseca de forma bastante audaz.

A história biográfica que aqui é apresentada quase se podia intitular de ‘semi-biografia’, precisamente porque a personagem de Shirley Jackson (Elisabeth Moss) nem é tanto o centro do universo deste filme, mas sim o livro que vai tentando construir, de forma obsessiva e desenfreada, ao longo do enredo. A escritora é bastante reconhecida no género de romance terrorífico e o plot do filme tem em vista, precisamente, o processo de escrita do seu próximo livro.

No entanto, tudo começa quando a escritora recebe em sua casa Fred (Logan Lerman) e Rose (Odessa Young), um jovem casal que está à procura de um abrigo temporário. Fred tem como mentor para a sua futura entrada no meio académico o crítico literário e marido de Shirley, Stanley (Michael Stuhlbarg), que equilibra os seus estudos com a surpresa de que Rose está grávida. Por sua vez, Stanley tenta lidar com a sua tentação em intimidar intelectualmente Fred, ao mesmo tempo que evita perturbar o processo criativo da sua esposa.

Stanley (Michael Stuhlbarg) e Shirley (Elisabeth Moss)

Mas, a verdadeira magia deste filme acontece, precisamente, com a relação inesperada e bastante atrativa que Shirley estabelece com Rose. Rose que passava o dia em casa, a tratar das lides domésticas, enquanto que Fred e Stanley trabalham durante o dia na Universidade. Esta relação é particularmente interessante, porque é a essência de um antagonismo total daquele que é estabelecido diretamente entre os dois casais, casais esses que se tratam com bastante frieza, distanciamento e falta de comprometimento, sobretudo motivado pela vertente masculina.

Ou seja, esta ideia de que as duas relações representam quase um negócio conjugal, não só aproxima cada vez mais as duas mulheres, como também espoleta a essência mística do livro que Shirley está a escrever: a sensação que é dada ao longo do filme é que este livro é inspirado, de forma bastante obscura e pouco linear, na própria Rose. Desta feita, a escrita de Shirley é mais quase um produto de vozes, do que propriamente genialidade criativa, como ela própria o diz.

Por outro lado, Michael Stuhlbarg apresenta uma performance verdadeiramente de encher o olho, com mais um sólido papel, fazendo um pouco lembrar – não a essência da sua personagem, mas – o ambiente que cria em “Call Me By Your Name” (2017), precisamente porque, de novo, acolhe um estudante para o ajudar no seu progresso científico e educativo. Além disso, naturalmente, a interpretação de Elisabeth Moss é um misto de surpresa com admiração, precisamente porque esta atriz apresenta nos últimos anos uma consistência bastante interessante, e que faz dela, objetivamente, uma das atrizes mais versáteis da atualidade.

Shirley (Elisabeth Moss) e Rose (Odessa Young)

“Shirley” é realizado por Josephine Decker e o seu argumento tem a mão de Sarah Gubbins, que o adaptou da obra homónima de Susan Scarf Merrell. Relativamente à realização, é deveras ousada e proeminente, agradando no tom e apenas desiludindo na forma como fecha a sua narrativa. Narrativa, essa, que obedece a um argumento que mostra muito mais do que aquilo que diz, com desvios de género altamente gratificantes e com um foco profundo, e ainda bem, no subtexto.

A interpretação de Odessa Young está bastante enquadrada nos altos padrões do filme, dando corpo e alma a uma personagem que até começa a película a comandar, em ritmo, o enredo e que concretiza a sua importância cinematográfica num claro paralelismo com a personagem de Shirley, com quem está intimamente ligada (metaforicamente), praticamente do início ao fim.

A ousadia desta obra é resumida com uma frase de Stanley: “Originalidade é a alquimia brilhante entre pensamento crítico e criatividade“. Perante este regalo cinematográfico, que peca apenas na forma como termina, resta-me só enaltecer o que acrescentou ao espectador enquanto experiência catártica.

Tiago Ferreira

Rating: 3.5 out of 4.

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