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Porque A Arte Somos Nós

“Mindhunter” (2017- ) conta a história de dois agentes do FBI, passada nos anos 70, cuja principal missão passa por entrevistar assassinos em série, no sentido de serem cada vez mais capazes de antecipar comportamentos e de ‘entrar’ na mente destes sujeitos, de forma a resolver, com mais efetividade, os casos que têm em vigor. É, no fundo, um estudo intensivo e complexo da mente, e um ensaio sobre aquilo que está oculto em nós, mesmo que não o entendamos à primeira vista.

O mais fascinante em “Mindhunter” é a sua musicalidade, num sentido abstrato. Porque o que existe é um conjunto de experiências da mente, todas elas de alguma forma ligadas, mesmo que até só percebamos a sua conexão num patamar final. A série está tão bem articulada que o que se retira da gratificação visual é, no fundo, uma pureza incomensurável: as personagens estão inseridas num ambiente que as transporta para outra realidade; uma onde a intelectualidade reina e, naturalmente, a paixão pelas profundezas do ser humano.

A cinematografia da série é positivamente aterrorizante, porque nada exclui e tudo mostra, não fornecendo qualquer tipo de clemência ao espectador, cujo desafio passa por imergir numa experiência intelectual avassaladora, complexa, diferenciada e, até certo ponto, poética. A banda sonora, por outro prisma, acompanha a linha audaz de um argumento que tem praticamente tudo: desde drama, romance, thriller e terror, há certas pitadas de comédia que fortalecem não só o convite inicial, como até justificam em parte o motivo narrativo, fornecendo uma viagem acessível para os mais atentos.

Jonathan Groff (Holden Ford) e Happy Anderson (Jerry Brudos)

O encontro mais fidedigno que aqui é feito resulta, principalmente, de uma perspetiva individual: daquilo que percebemos que há no oculto de nós próprios, mas que é passível de ser explicado. A teoria não supera a prática, porque o que extraímos não está nos livros. Tudo o que se sente tem uma motivação lógica, mas um significado ainda maior.

Desta feita, as atrocidades que aqui são cometidas por estes ‘monstros’ – assassinos – em série não se tornam, per si, suficientes para abandonar o barco: o que resulta é, em certa medida, precisamente o oposto, no sentido em que o horror traz possibilidades infinitas. Há, assim, uma paixão imensa pelo mal, e um interesse cego por aquilo que motiva o politicamente incorreto e as normas.

São, até então, duas temporadas que podiam perfeitamente ser analisadas como um belo filme de múltiplas horas, pois o conhecimento que estas trazem é quase comparável a vários dias de leitura de teoria psicanalista, e talvez este cenário seria menos próspero em valor, arrisco-me a dizer. Porque, lá está, não é só o deslumbramento que as personagens oferecem, em particular Holden (Jonathan Groff), com a sua personalidade audaz, inconformada, estilo inconfundível e tão senhor de si mesmo, mas aqui há que realçar a realização extremamente eficiente, que tem no mestre David Fincher – conhecido por trabalhos como “Seven – 7 Pecados Mortais” (1995), “Zodiac” (2007), “A Rede Social” (2010) e “Em Parte Incerta” (2014) – a maioria dos episódios geridos.

Assim, “Caçador de Mentes“, como é o título em português, mostra-se mais do que uma mera produção de investigação, colidindo, e bem, com múltiplos géneros e, desta feita, tornando-se numa das séries mais completas dos últimos anos. Uma terceira temporada é aguardada com especial apreço, apesar das perspetivas serem curtas, graças ao Covid-19.

Jonathan Groff (Holden Ford)

A ideia da criação da série coube a Joe Penhall, um argumentista inglês muito bem conceituado, que teve a ousadia de alavancar uma produção desta envergadura. Porque o propósito fundamental da série não é o de explicar a atrocidade da mente por detrás de assassinatos como os que o nosso passado sentiu, mas acima de tudo de nos pôr a pensar (como objetivo primordial da arte como um todo) de que forma é que há uma explicação lógica psicanalítica no fundo de tudo isto.

Há um certo fascínio adjacente ao estudo que pode consumir os mais fanáticos, mas certamente toda a jornada que “Mindhunter” oferece levar-nos-á a sentar numa cadeira, a pensar na vida e a perceber que somos, no universo, apenas uma gota no oceano.

E essa gota que somos, certamente terá duas ou três cores, duas ou três formas, que depois de termos sido caçadores de mentes no ecrã, e da nossa mente na vida real, uma coisa é certa: a sua tonalidade e nitidez ganhou uns pontinhos no obscuro de nós mesmos. E a arte é assim mesmo. E bem.

Pela magia da sétima arte.

Tiago Ferreira

Rating: 3.5 out of 4.

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