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Galileu Galilei viveu de 1564 a 1642, portanto, entre a segunda metade do século XVI e a primeira do XVII. A sua vida transcorreu entre Pisa e Florença no centro de Itália, região berço do Renascimento, na Toscana. Galileu tornou-se célebre pela organização do método usado pela ciência moderna, que substituiu a ciência aristotélica prevalente na Idade Média. Ele também ficou célebre por notáveis descobertas (manchas solares, montanhas lunares, os quatro anéis de Saturno e estrelas da Via Láctea).

As suas observações dos corpos celestes fortaleceram a tese do Heliocentrismo, que reconhecia estar o sol no centro do sistema solar e não a Terra. Outras criações célebres que ele nos deixou foram: a balança hidrostática que media ângulos e áreas, o relógio de pêndulo e o termómetro de Galileu. A construção do método científico e as suas descobertas fizeram-no conhecido como o “Pai da Ciência Moderna”.

O pano de fundo da edificação da ciência moderna foi o Renascimento, onde se defendia a singularidade (subjetividade) e totalidade do homem (corpo, alma, espírito). Foi também um tempo em que se postulou a autonomia da natureza e a separação do seu estudo das questões de fé, de modo que se deu à Ciência autonomia diante da Teologia. Não havia entre os primeiros cientistas a recusa da Teologia ou mesmo da Filosofia, mas a autonomia epistemológica procurada por eles, no decorrer da modernidade, fez surgir metafísicas materialistas, essas filosofias sim, claramente antirreligiosas e anti-metafísicas.

Galileu Galilei perante o Santo Ofício, pintura de Joseph-Nicolas Robert-Fleury

As posições metodológicas de Galileu substituíram velhas práticas do aristotelismo, o que promoveu na cultura ocidental uma nova forma de fazer ciência organizada em dois momentos. Um primeiro crítico, onde o cientista recusava a metafísica subjacente à física aristotélica e outro positivo, com a defesa da observação empírica e da construção de uma teoria sobre o funcionamento do mundo.

Com o passar dos anos o primeiro momento perdeu o sentido. Dessa forma, o método de Galileu ajudou a superar a crise de cultura que se estabelecera nos séculos XIV e XV, no final da cristandade medieval, com dúvidas sobre o funcionamento do mundo, rompimento da cristandade medieval e do papel do homem nele.

O método de Galileu conjugava a observação dos dados dos sentidos com o uso da razão, aspectos que se afastaram entre os filósofos herdeiros de Descartes que se dividiram em racionalistas de um lado e empiristas de outro. Galileu simplesmente uniu os dois procedimentos: a observação dos factos e o seu ordenamento racional. Por outras palavras, o emprego da indução para compilar as observações e a dedução para controlar as hipóteses com os dados empíricos.

Dessa forma, Galileu chegou a um método que observa o fenómeno e o simplifica pela redução dos dados a elementos matematizáveis ou numéricos, agrega pela indução esses dados observados numa hipótese explicativa e verifica a hipótese com a dedução do cálculo e da observação. Esses procedimentos informam-nos que o mundo se organiza não mais em essência, categorias e qualidades, mas em grandezas, figuras e quantidades. Em síntese, vemos nascer uma ciência que se ocupa da quantidade, isto é, de medir o fenómeno.

Sobre o trabalho de Galileu, observou Ortega y Gasset que provocou um mal-estar com a Igreja, menos por conta de questões bíblicas e teológicas como normalmente se alardeia e mais devido (“Em Torno a Galileu“. Petrópolis: Vozes, 1989, p. 23): “a miúdas intrigas de grupos particulares”. Note-se que intrigas e mentiras sempre fizeram parte da história humana com graves consequências. Hoje essas más consequências são ampliadas por redes sociais, onde se pode mentir impunemente como se estivesse falando a mais santa das verdades.

Galileu Galilei não inventou, mas melhorou o telescópio. / Getty Images

As mentiras sobre Galileu o levaram, em junho de 1633, com setenta anos de idade, a ter que, forçadamente, rejeitar as ideias de Copérnico, sem as quais não seria possível o desenvolvimento da ciência moderna. A mentira e a intriga palaciana promovem males sociais, nesse caso indispondo o cientista com as autoridades da Igreja, mas não queremos insistir nesse assunto. O que Ortega chamou atenção de mais importante é que a metodologia de Galileu nos conduziu a uma nova civilização pautada na crença de uma ciência exata da natureza e da técnica, de uma civilização capaz de redimir o homem.

E a metodologia de Galileu que contribuiu para superar a crise de cultura dos anos medievais trouxe-nos a uma nova crise. Primeiro porque a metodologia das ciências naturais mostrou-se insuficiente para resolver os problemas das chamadas ciências humanas que surgiram no século XX, mas principalmente porque a compreensão de que os factos mesmos não oferecem a realidade e “a ciência mesmo é, com efeito, a interpretação dos factos. Por si mesmos eles não nos dão a realidade, ao contrário, ocultam-na, isto é, propõem-nos o problema da realidade.” (id., p. 25).

Do que o filósofo espanhol está a falar? Ele chama atenção para o facto de que a ciência trabalha com elementos que o homem tira de si mesmo, além daqueles evidentes que dependem do que nos rodeia e encontram-se nos dados mesmos. Por isso, disse o filósofo, a realidade não é o dado, mas o que fazemos com ele.

Para entender as raízes das nossas dificuldades presentes, Ortega y Gasset mergulhou na noção de realidade que surgiu da compreensão de mundo veiculada por Galileu. O cientista dizia que concebia na sua mente um móvel lançado num plano horizontal, sem impedimento, e pretendia calcular o movimento dele. Essa situação imaginária, própria do seu raciocínio matemático, mostra que há uma ideia de realidade anterior aos factos, já que os corpos se movem no espaço entre impedimentos.

Ortega y Gasset

O que Ortega observou é que primeiro Galileu concebeu uma realidade e depois a aproximou dos factos. E quanto à própria ideia de realidade que nos deixou Galileu ficou sob suspeição pelo avanço das diferentes ciências, isso trouxe-nos a uma nova crise, a de entender afinal o que é a realidade que não mais cabe naquele mundo das ciências naturais da Renascença.

Podemos tirar dessas observações de Ortega duas lições:

  • A primeira é que a história tem momentos de maior sossego e outros de crise. Nos momentos de calma a ideia de realidade ajusta-se às crenças presentes e nos momentos de crise não se ajusta. Pede, então, novos procedimentos e entendimentos e uma nova leitura filosófica do mundo;
  • A outra ideia é que estamos desafiados a pensar numa nova forma para entender a realidade dos nossos dias, uma maneira ampla o suficiente para recolher a visão de ciência que temos sem a deixar perder-se nas confusões dos seus próprios limites. Isso somente é possível estudando e entendendo o que fez Galileu e o que ele representou na construção da ciência moderna e da noção de realidade que se desenvolveu à sua volta.

José Maurício de Carvalho

José Maurício de Carvalho – Departamento de Filosofia da UFSJ, é uma das maiores autoridades em filosofia de língua portuguesa e autor de mais de três dezenas de obras filosóficas. Doutorado em Filosofia, também é filósofo clínico e psicológico. Este texto está presente na edição 235 da Revista Conhece-te, portanto, deste mês de Setembro.

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