OBarrete

Porque A Arte Somos Nós

Publicado pela Mandarim em 1996, este livro de cartas é interessante para observarmos um espírito crítico feminino, numa época em que as mulheres eram renegadas aos cuidados com o corpo, como apêndices de homens apenas. Razão pela qual poucas mulheres tiveram os seus atributos intelectuais reconhecidos, ainda para mais numa época em que poderiam facilmente ser consideradas bruxas ou heréticas. Não nessa época e não em França, mas todo cuidado era pouco.

Lendo as cartas de Madame Du Deffand ao seu grande amigo e ídolo literário, Voltaire, observei o apurado senso crítico, uma certa ironia (por vezes, beirando a acidez), gosto estético e literário de altíssimo nível e, em várias das cartas, ela despede-se de forma dramática, acusando o amigo de abandono e de não lhe enviar os seus lançamentos, obtidos por intermédio de amigos em comum. Voltaire encontrava-se em Genebra, na Suíça, e ela em Paris.

Madame Du Deffand

Velha e cega, reclama nas cartas por viver isolada e dentro de um barril. Interessante a cidade de Paris ser tratada assim. Ela toma partido e conta as desventuras de Jean-Jacques Rousseau, inimigo declarado de Voltaire, e a quem este “homenageou” publicando o excepcional “Cândido“, onde o personagem-título é uma sátira bem elaborada da ideia do “bom selvagem” de Rousseau. Gratuitamente, ela toma partido de Voltaire e defenestra as maluquices de Rousseau, sobretudo do seu desentendimento com David Hume, célebre filósofo britânico.

Fã dos seus escritos, ela comenta em diversos momentos temas fundamentais da filosofia de Voltaire, sobre o fanatismo e a intolerância. Comenta óperas e apresentações teatrais, é exigente ao tratar de escritores novos e ainda encontra tempo para filosofar, cito: “Não falemos mais de felicidade, ela é a pedra filosofal que arruína todos que a procuram. Não nos tornamos felizes sistematicamente; não há outra boa receita para encontrá-la além daquela de uma das minhas tias-avós: aceitar o tempo como ele vem e as pessoas como são; acrescentaria ainda uma coisa que me parece mais necessária: estar bem consigo mesmo“.

Brilhante em muitos momentos, maçantes e chorosos noutros, o certo é que Madame Du Deffand reconheceu o amigo em vida (já atribuía o epíteto “O Século de Voltaire”). Confessa ter mais de 110 tomos das obras do amigo (devendo incluir aí reedições e livretos) e sempre cobra mais e mais do envio de obras novas por parte do amigo.

Personagem brilhante, Madame Du Deffand viveu de 1696 a 1780. Foi bom ler as suas inconfidências e entender que Paris também se pode tornar um claustro.

Marcelo Pereira Rodrigues visitando Voltaire no Panteão Nacional de França

Marcelo Pereira Rodrigues

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