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Porque A Arte Somos Nós

“No trabalho, nas diversões; aos sessenta anos, as nossas forças e os nossos gostos são o que eram aos dezessete. Os velhos, nos tristes dias de outrora, renunciavam, retiravam-se, dedicavam-se à religião, passavam o tempo lendo e pensando, pensando!”

O livro “Admirável Mundo Novo” (Globo de Bolso, 397 p.), publicado em 1932, do escritor inglês Aldoux Huxley (1894-1963) é o marco inicial da literatura distópica, sendo, ao lado de “1984“, de George Orwell (do qual já tratei aqui), “Fahrenheit 451“, de Ray Bradbury, e também “Laranja Mecânica“, de Anthony Burgess, livros distópicos, embora este último aborde uma questão de repressão à violência e fica restrito apenas a ambientes psiquiátricos, com a inovação do Método Ludovico. Mas vamos discorrer sobre “Admirável Mundo Novo”?

Na trama, a sociedade do futuro é fruto de bebés criados em laboratório, o Centro de Incubação e Condicionamento de Londres central, sob o comando do D.I.C. (Diretor de Incubação e Condicionamento). A produção são verdadeiras fornadas que os torna idênticos, com o processo Bokanovsky pertencentes a classes que são os Alfas, os Betas, os Gamas, os Deltas até chegarem a classes mais desprovidas e, consequentemente, escravas, os Ípsilons. Os Alfas são aqueles que surgiram para comandar, sendo os Alfas Mais uma espécie atualmente do Phd de determinada disciplina, doutor aos olhos dos demais. São bonitos, fortes e saudáveis.

Aldous Huxley / Getty Images

Nessa sociedade programada, laboratorial, o modo de vida antigo já não é adequado, sendo que os selvagens, assim denominados, são enviados para determinadas reservas, pois são vistos como excêntricos e não pertencentes à sociedade do progresso. A religião descrita no livro é preconizada pelo Sr. Fordeza (o Sr. Administrador Mustafá Mond), uma metáfora bem sacada do advento do progresso e cientificismo dos idos dos anos 1920, e a alusão a Henry Ford, o grande industrial, é notória. O lema do Estado Mundial é Comunidade, Identidade e Estabilidade. Estamos no século VI d. F. (depois de Ford).

O sexo serve apenas como recreação, e a violência sádica é preferível. Laços de amizade sólidos e amor romântico? Esquece. O Estado Perfeito aboliu esses vínculos. Família não existe mais, afinal, lembrem-se: os seres humanos são criados via inseminação artificial. Vale registrarmos a passagem: “Nosso Ford – ou nosso Freud, como, por alguma razão inescrutável, preferia ser chamado sempre que tratava de assuntos psicológicos -, Nosso Freud foi o primeiro a revelar os perigos espantosos da vida familiar. O mundo estava cheio de pais – e, em consequência, cheio de aflição; cheio de mães – e, portanto, cheio de toda espécie de perversões, desde o sadismo até a castidade; cheio de irmãos e irmãs, de tios e tias – cheio de loucura e suicídio“.

Lenina Crowne, muito popular e funcionária exemplar, envolve-se com Bernard Marx, que também é um funcionário útil ao sistema, mas ousa criticá-lo às vezes. Bernard tem como “amigo” (ou o que mais próximo poderia ser denominado ‘amigo’) Helmholtz Watson, que conseguiu a proeza de fazer sexo com 640 mulheres num período de quatro anos, praticante de desporto e excelente orador, que já não encontra satisfação por esses feitos. Os novos tempos preconizam a supressão dos sentimentos, bons ou ruins, e tudo é administrável com determinadas quantidades de psicotrópicos (soma) para ajustar o indivíduo. Sofrimento e dores não são aventados, pois isso poderia fazê-los retornar ao estágio da barbárie.

Vamos fazer uma ponte com a nossa pós-modernidade? Bens culturais são terminantemente proibidos e, nesse quesito, é com preocupação que analiso que atualmente as Letras são terminantemente desprezadas por grande parte da população, que mergulhadas apenas no reflexo de seus smartphones, se drogam com fuxicos, fake news e noticiário de celebridades (seria essa a nossa “soma” da atualidade?).

Henry Ford

O método publicitário empregado pelo Estado é composto por três grandes jornais: o Rádio Horário (destinado às classes superiores), A Gazeta dos Gamas, verde-pálido e O Espelho dos Deltas, com frases monossilábicas e destinado às classes inferiores. Vamos brincar um pouco? O Rádio Horário seria OBarrete, a Gazeta dos Gamas um jornal de grande circulação e o destinado às classes inferiores seria qualquer jornaleco sensacionalista destinado a suscitar polémicas e atinente ao gosto de pessoas estúpidas, tais os tablóides ingleses! Espero não ferir susceptibilidades!

Nessa estratificação social, as classes inferiores sentem-se felizes com o trabalho de sete ou oito horas, mesmo que dispostos a lutarem por uma carga menor, mas afora o serviço todas as suas predisposições deverão ser direcionadas para a diversão fútil, o cinema tolo e no caso de tédio, um entorpecimento advindo da ingestão de drogas. Fácil, não é mesmo? Estranho admirável mundo novo que vivemos atualmente, Huxley foi um visionário ao abordar o povo escravo que ama os seus grilhões e que idolatra os seus senhores, e a ver a tola programação de televisão aberta, com as suas novelas piegas e destinadas a indivíduos com pensamento simplório, a receita está dada.

Numa das passagens do livro, Bernard e Lenina vão a um destino de recreação. Do mesmo modo que atualmente ricaços frequentam os safaris africanos, os dois destinam-se a uma reserva de selvagens que ainda preservam muitos dos hábitos estranhos. Esses hábitos estranhos são a monogamia (confrontando com a promiscuidade apregoada pelo mundo novo), o Cristianismo e esse estranho hábito de se isolar para ler inúteis obras literárias. Claro que William Shakespeare não é conhecido nesse mundo moderno e racional.

William Shakespeare

Huxley descreve assim o cenário: “Cerca de sessenta mil índios e mestiços… nossos inspetores visitam de tempos em tempos… fora disso, nenhuma comunicação com o mundo civilizado… ainda conservam os seus hábitos e costumes repugnantes… o casamento, se sabe o que isso quer dizer, minha cara senhorita; famílias… nenhum condicionamento… superstições monstruosas… o Cristianismo, o totemismo, o culto dos antepassados… línguas extintas, como o zuni, o espanhol, o atabasco… pumas, porcos-espinhos e outros animais ferozes… moléstias contagiosas… sacerdotes… lagartos venenosos…“.

Chegando lá, são apresentados ao selvagem John, que é filho de Linda. Ironia aqui, Linda é feia de doer. “Além disso, ela não era uma selvagem autêntica, pois fora incubada num bocal, decantada e condicionada como qualquer outra pessoa, de modo que não podia ter ideias verdadeiramente singulares. Enfim – e era esse o motivo mais poderoso para que ninguém desejasse ver a pobre Linda -, havia a sua aparência. Gorda, com a mocidade perdida, os dentes cariados, a cútis pustulosa e aquele corpo – Ford! Era simplesmente impossível olhá-la sem sentir náuseas; sim, náuseas“. Vê-se a fina ironia. Da mesma forma que evocamos Deus, Huxley evoca Ford.

John, o Selvagem, é aquele com o qual nos identificamos logo de caras. Isso devido ao mundo futurista nos embalar até ao ponto de não percebermos mais a humanidade como ela é. Mas John vem nos salvar. Contrapõe Lenina e Bernard Marx, faz uma viagem ao mundo civilizado e percebe com preocupação que a excelência no avanço da humanidade não produziu boas coisas. Revolta-se com os métodos de correcções aplicados à sua mãe, que a levam à morte e insurge-se libertando os escravos de um sistema perverso, bradando Liberdade a todos eles. O desfecho não é bom, mas é um sopro de alívio no correto e perfeito mundo novo, dos seres criados para serem tão somente, escravos.

“Admirável Mundo Novo” apresenta-nos um enredo por vezes empolado. As descrições futurísticas muito bem dissecadas exigem-nos redobrada atenção, dificilmente conseguimos estabelecer empatia com os personagens, e mesmo os insurgentes são estranhos para nós. Numa narrativa distópica, o cenário é que nos leva a refletirmos sobre os malefícios que um Estado autoritário nos pode sitiar. Um livro que incomoda pelas verosimilhanças, pela fina ironia e pela visão de águia do seu autor que anteviu muitas das mudanças pelas quais a nossa sociedade veio a enfrentar.

No Brasil, o grande músico paraibano Zé Ramalho escreveu uma bela letra na canção Admirável Gado Novo, que vale a pena ser ouvida. Infelizmente, bastante atual na conjuntura de grande parte de brasileiros Ípsilons, esse “povo marcado, povo feliz“…

Marcelo Pereira Rodrigues

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