“Eu tenho a maldição da razão; sou pobre, solteiro, depressivo. Há meses reflito sobre a doença de refletir demasiadamente e estabeleci com toda a certeza a correlação entre a minha infelicidade e a incontinência da minha razão. Pensar, tentar compreender nunca me trouxe nenhum benefício, mas, ao contrário, sempre atuou contra mim”.
Trecho do livro.
O livro “Como Me Tornei Estúpido” (Rocco, 158 p.) do antropólogo francês Martin Page é uma sátira à idiotia verificada no mundo atual. O mais interessante é que, ao invés de um tratado científico, o que poderia levar a crer dada a titulação do escritor, Page (45 anos) descreve um romance com muita ironia e propriedade.
Antoine, personagem principal, é um estudante diletante que se debruça sobre a língua aramaica com a mesma propriedade com que estuda Séneca e outros filósofos obscuros. Uma sátira ao intelectual enrustido, perdido num mundo das letras, mas sem aplicação prática no dia-a-dia. Esse estranhamento já é verificado na infância, como na passagem em que o narrador cita as dificuldades da criança Antoine:
“Quando criança, sua ambição era ser como o Pernalonga; depois, mais maduro, tinha querido ser igual ao Vasco da Gama. A orientadora profissional, no entanto, pediu-lhe que escolhesse estudos que estivessem na relação oficial de cursos registados no Ministério da Educação“.

Adulto, Antoine pensa em tornar-se num alcoólatra, de forma a se perder e fugir da sua própria consciência. Como um bom intelectual, procura ler e estudar tudo sobre a acção do álcool no organismo de um indivíduo. Na prática, entra em coma alcoólico após beber meio copo de cerveja e é internado. Para se perder da sua condição, resolve colocar fim à própria vida, entrando para um curso de suicidas em potencial. Nessa passagem, uma ironia acerca daquelas pessoas que são tão fracassadas que não conseguem nem se matar.
Daí o salto pensado por Antoine: tornar-se estúpido. O apartamento passa por uma revolução. Os livros são encaixotados e retirados do olhar do personagem, contando para isso com a ajuda de abnegados amigos que ficam responsáveis por uma intervenção se a estupidez em Antoine ultrapassar os limites do aceitável. Daí o nosso herói empreende uma aventura sem igual pelo mundo dos negócios, enriquecendo-se como um bom burguês e perdendo todos os referenciais críticos que pontuavam sua vida, transformando-o em um respeitável agente da Bolsa de Valores.
Mais do que discorrer sobre a obra, a intenção é uma chamada para aguçar a curiosidade dos leitores(as). É realmente um livro que deveria ser lido! O único senão é tratar-se de uma novela curta.

Um breve trecho da obra:
“Sempre parecera a Antoine contabilizar sua idade como os cães. Quando tinha sete anos, ele se sentia gasto como um homem de quarenta e nove anos; aos onze, tinha desilusões de um velho de setenta e sete anos. Hoje, aos vinte e cinco, na expectativa de uma via mais tranquila, Antoine tomou a decisão de cobrir o cérebro com o manto da estupidez.
Ele constatara muitas vezes que inteligência é palavra que designa baboseiras bem construídas e lindamente pronunciadas, e que é tão traiçoeira que frequentemente é mais vantajoso ser uma besta que um intelectual consagrado. A inteligência torna a pessoa infeliz, solitária, pobre, enquanto o disfarce de inteligente oferece a imortalidade efémera do jornal e a admiração dos que acreditam no que lêem…“.