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Porque A Arte Somos Nós

A primeira parte deste artigo está disponível aqui.

No cinema, um filme que retrata uma grande parte do que está a ser explicado é “Cães de Palha” (1971), do realizador norte-americano Sam Peckinpah. Este decorre no meio rural de Inglaterra, e é caracterizado pela brutalidade e violência, onde as personagens são levadas a situações extremas. Um jovem e pacífico professor americano é obrigado a enfrentar um grupo de camponeses brutais, acabando por recorrer aos mesmos meios que lhe repugnavam.

Aqui fica a dúvida se de facto o personagem principal, Dustin Hoffman, é “bom” ou “mau”, se as provocações constantes por parte dos outros personagens justifica a mudança de personalidade do professor ao longo do filme… Aqui debatemo-nos com vários valores morais, valores esses que para o espectador podem variar, mas é certo que este se vai ver envolvido no drama. É uma história com premissas bastante “reais”, onde a ficção se torna um simples acrescento ao nosso quotidiano.

Dustin Hoffman em “Cães de Palha” (1971)

O cinema, ao mesmo tempo em que constrói os mitos da sociedade – legitimando os valores do poder que se instala e recontando à sua moda os acontecimentos passados – também carrega em si um potencial de liberdade (Guimarães, 1998).

Considerado uma das molas propulsoras do movimento de estetização da violência no cinema norte-americano, Quentin Tarantino possui uma particularidade na construção da narrativa dos filmes que dirige: o uso de citações cinematográficas. Paradigma do cinema de autor, a citação cinematográfica – ou seja, fazer referência a outros filmes na sua escrita audiovisual – causa uma espécie de ruído quando pensamos em Tarantino como apenas o expoente de um género fílmico, o de violência.

Eis que aqui vemos um procedimento muito interessante nas longas-metragens realizadas pelo cineasta que, por sua vez, é pouco considerado: a construção de filmes tal como se fosse uma combinatória do amplo inventário cultural fílmico que existe. Não são apenas filmes sobre filmes, mas sim “filmes sob filmes” (Venancio, 2012).

Funcionário da loja local Video Archives em Manhattan Beach, Califórnia, Tarantino seria o maior expoente de uma série de movie geeks que convenceram produtores independentes a financiar seus filmes no começo da década de 1990.

As suas realizações seriam a bricolage dos filmes de loja – e, assim, incluindo os filmes B e estrangeiros, com pouco espaço nas salas de exibição após a febre do VHS – algo que, mesmo sendo acusado de paródia, sempre foi tratado enquanto homenagem pelo realizador. Assim, não é a violência a força-motor de Tarantino, mas sim a combinação de filmes, as tais “homenagens” (Venancio, 2012).

Quentin Tarantino

Isso é possível ver filme a filme, além de ser algo que o cineasta cada vez mais radicaliza em sua produção. Vejamos isso com o filme “Pulp Fiction“, de 1994, que tem como principais actores Uma Thurman, John Travolta e Samuel L. Jackson. Neste caso, o filme-chave seria “As Três Faces do Terror” (1963). Considerado um filme de terror de Mario Bava com Boris Karloff, este possui uma história onde a motivação é a vingança, e o assassinato tal como se fosse um ubernoir.

O filme de Bava, tal como o de Tarantino, é uma trilogia num filme só. E os três campos de livre citação apenas realça a força dessa forma narrativa imbricada em certa circularidade. Assim, a nível do argumento, usa “Amor à Queima-Roupa” (1993, argumento do próprio Tarantino), “Mata, Que Nós Limpamos o Sangue” (1996, rearticulado na história de limpar as cenas do crime) e o próprio “Cães Danados” (primeira longa-metragem de Tarantino, 1992). A própria referência ao género literário pulp fiction e a escritores, tal como Elmore Leonard, são aqui altamente articulados (Venancio, 2012).

Samuel L. Jackson e John Travolta

Durante o filme, “O Beijo Fatal” (1955) é amplamente referenciado no personagem Butch Coolidge (lutador de boxe interpretado por Bruce Willis). Já a cena da dança entre Vincent Vega (John Travolta) e Mia Wallace (Uma Thurman), apesar de parecer uma paródia de “Febre de Sábado à Noite” (1977), é claramente uma citação de “Bando à Parte” (1964). Os dois sádicos criminosos, e toda sua sequência fílmica, é uma releitura dos criminosos Mountain Man e Toothless Man da obra cinematográfica de John Boorman, “Fim-de-Semana Alucinante” (1972).

Outra cena digna de registo, é o discurso feito por Jules (Samuel L. Jackson) citando um falso livro bíblico de “Ezequiel 25:17”. Essa passagem é usada na abertura de um filme onde entra Sonny Chiba, “Bodigaado Kiba” (1973) baseado na manga de Ikki Kajiwara (Venancio, 2012).

Por fim, no que toca à banda-sonora, a surf music é utilizada em situações que jamais figurariam nos beach movies estrelados por Frankie Avalon, ou seja, ao invés de comédia e dias felizes, essas músicas emolduram ironicamente a vingança e a violência de Quentin Tarantino (Venancio, 2012).

Célebre cena entre Uma Thurman e John Travolta

Em forma de conclusão, podemos perceber certas motivações que levam à receita fácil da violência no cinema americano, ou seja, no cinema maioritariamente de massas. O factor histórico tem um grande peso quando se faz uma retrospectiva evolutiva da história, quer seja na sociedade norte-americana, quer seja dentro da própria ficção.

A verdade é que os próprios artistas são vítimas dessa mesma evolução, tendo acabado sempre por seguir os passos dos seus ídolos. O que muda é a forma como o fazem, pois se o mundo muda, o cinema também muda.

Contudo, dentro da própria violência, existem várias formas de a abordar. Tudo dependerá da mensagem do cineasta, e o público que irá receber essa mesma mensagem. O impacto de um filme muda consoante o seu receptor.

Penso que o espectador deverá filtrar e descodificar a mensagem da história, pois independentemente do facto da obra influenciar o público, teremos sempre de olhar para um filme não só como um espelho da realidade, mas também como um aviso sério à nossa consciência enquanto Ser Humano.

Bibliografia

Guimarães, Áurea M.. O cinema e a escola: Formas imagéticas da violência.1998.

Venancio, Rafael Duarte Oliveira. Crítica Cultural enquanto Prática Fílmica: o Cinema de Quentin Tarantino.2012. Disponível em “http://www.bocc.ubi.pt/pag/venancio-rafael-critica-cultural-enquanto-pratica-filmica.pdf

Diogo Passos

2 thoughts on “A violência no cinema americano (Parte 2)

  1. Excelente a conclusão do artigo! Tarantino é um dos meus cineastas preferidos, sinto que ele exacerba sim na violência (notadamente nas cenas finais) quando parece esguichar sangue por toda a tela (demonstrativo inclusive da foto publicada neste artigo, com Samuel L. Jackson e John Travolta), mas o que mais admiro são os diálogos ousados, irônicos e cheios de nuances. Parabéns pelas informações que fundamentaram ainda mais o meu gostar.

    1. Tarantino é um jogo semiótico constante. Sem dúvida que este trabalho foi algo muito estimulante, pois permite entendermos melhor certas cenas dos seus filmes, e os porquês… A sétima arte é um poço sem fim para variadíssimas abordagens mais científicas. Temos novas ideias em mente, e com certeza haverão boas surpresas para todos os nossos leitores!

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