“Por sorte os uruguaios freiam quando veem você pôr um pé na faixa zebrada. Em Buenos Aires teríamos morrido atropelados.”
“A Uruguaia”
“A Uruguaia” (Editora Todavia, 2021, 123 páginas), do escritor argentino Pedro Mairal, é um deleite. Primeiro por tratar os infortúnios de um escritor. Segundo por realizar uma ação bancária ao qual faço de dois em dois meses. Se o protagonista, Lucas Pereyra, viaja da Argentina ao Uruguai para resgatar os seus 15 mil dólares (se realizasse o câmbio no seu país a legislação fiscal lhe comeria uma grande soma); o outro Pereira aqui (sem y, de carne e osso e este que vos escreve) viaja da sua cidade para a capital onde existe uma agência da Western Union. Não tenho a intenção de burlar o fisco. O que acontece é que na cidadela onde resido não existe essa agência.
As semelhanças param por aqui (ainda bem). Pois o famigerado Lucas está com o casamento à beira do precipício, sendo sustentado pela mulher e aproveitará a estadia em Montevidéu para se reencontrar com um caso amoroso. Uma troca de e-mails e o acerto se dá. Acompanhamos o protagonista a atravessar o rio de la Plata e a preparar-se para o grande encontro. Tem como meta comprar também um presente para o seu filho, o que de facto faz, entrando numa loja de artigos musicais e adquirindo um ukelele.
Na página 34, um itinerário que tive o prazer de conhecer na capital uruguaia. Viajem comigo. Cito:
“Saí da rodoviária. Parei, esperando o sinal abrir. O dia útil acontecendo com todo o seu movimento comercial foi desfazendo a minha fantasia brasileira. Dali a pouco os bancos iam abrir. Atravessei uma pracinha com restaurantes, artesãos e cheiro de alho-porro, e andei por uma diagonal até a avenida 18 de Julho. O meu escasso senso de orientação em Montevidéu dependia dessa avenida. Se eu seguisse por ela até o fim, chegava à Cidade Velha, ela era uma espécie de coluna dorsal de uma península, terminava com praia dos dois lados.
E posicionava mentalmente o parque Rodó à minha esquerda, longe, Cordón ficava por lá, a casa de Enzo à direita, mais adiante, na Fernández Crespo, as quatro praças, 33, Cagancha, Entrevero, Independencia, o Centro, a área dos bancos, La Pasiva, as lojas de música, a rua de pedestres. Não muito mais que isso. Era o meu mapa mental e emocional, porque, assim que virei a esquina, já na avenida, senti a presença de uma Montevidéu imaginada, misturada às minhas poucas recordações e com os vídeos que Guerra me mandava de vez em quando.“
Poderia bem ser o meu diário de bordo, exceto a parte da rodoviária. Cheguei ao aeroporto. Esclarecendo, Guerra é o sobrenome do affair do nosso protagonista. Que dá entrada num hotel cinco estrelas que dá vistas para um cartão postal, o Palácio Salvo e, a partir daí a sua trajetória será mais acidentada que a de Ulisses tentando retornar a Ítaca. Essa trama rocambolesca parece esclarecer a um adulto que passou dos 40 que os sonhos ficaram no passado. Impulsivo, chega a fazer uma tatuagem em homenagem à amada.
É assaltado, antes já se havia encontrado com a sua amante (só que não) e ela esclarece os pontos, que não quer ser um casinho só de vez em quando. Ir para o hotel apenas para sexo? Esquece! Lucas também tem um encontro com Enzo, um professor e editor de uma revista literária que pretende ter dois números apenas, e este o recebe esclarecendo que Montevidéu passa ao largo de ser um idílio. Que se o sujeito desavisado não tomar cuidado, ela fode você.
Essa espécie de guru é uma pimenta no livro, restando a Lucas retornar humilhado para Buenos Aires, e na narrativa em fluxo de linguagem observamos que o fim do casamento acontece, afinal, bater à porta, humilhado por ter sido roubado e não poder prover a casa e pagar os empréstimos da sua esposa, a qual desconfiava que andava a ter os seus casos também, é “dose para dinossauro”.
Um livro prazeroso, humano, sonhador, que me fez rememorar Montevidéu em cada página. Espero não ter nenhuma Guerra esperando-me lá numa visita futura. Quanto à ida à Western Union, espero continuar a receber os meus direitos autorais de diversos países, afinal, nós escritores também comemos.
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