Um uniforme. Uma etiqueta com o meu nome de guerra: Pereira. Coturnos. Fardas. Pelotão e barba bem-feita, cabelo rente. Quem serviu o Exército como eu tem nítido no espírito as palavras de ordens, os brados, o clamor à Pátria e a juventude faz-nos parecer autómatos serviçais a serviço de uma causa maior. Ainda bem que o Brasil é um país pacífico, como lido no seu Hino, “deitado eternamente em berço esplêndido” e assim este que vos escreve apenas deu alguns tiros de rifles (ainda me lembro das balas traçantes) como forma de treinamento. Passei incólume ao frontline.
Este não foi o caso dos jovens alemães durante a I Guerra Mundial, e o início de “All Quiet on the Western Front” (em português, “A Oeste Nada de Novo“), do realizador Edward Berger, com os atores Daniel Brühl, Felix Kammerer, Albrecht Schuch, Aaron Hilmer, Devid Striesow, Edin Hasanović, entre outros, com as suas 2h23min, faz-nos entender que toda a inocência não será jamais perdoada. O drama de guerra é repleto de miudezas que, despercebidas, ficam no subtexto, mas para quem consegue captá-las é um verdadeiro manjar dos deuses. Pois nós, soldados (eu um reservista de segunda categoria) somos aficionados por fardas e etiquetas de identificação.
De forma sub-reptícia um exército de mulheres costura os uniformes reutilizados, preenchendo de linhas os buracos feitos por projéteis no front. O tecido deforma um pouco, perde os seus vincos, mas o que sobressai é a economia de guerra, proporcionando a neófitos adentrarem as trincheiras da morte. Atentem-se para os ruídos das máquinas de costura, assemelham-se a metralhadoras. Velcros identitários são largados no chão, transformando-se apenas em mais um nessa combalida máquina de triturar gente. Como não poderia deixar de ser, há sempre um motivador a conclamar os incautos. Assim, elegias ao Kaiser, a Deus e à Pátria são lugares comuns e acreditar que no mundo ainda existem crédulos a este chamamento escroto. Pois bem…

Ato contínuo, quando os jovens se dão conta de que a guerra passava longe de ser uma colónia de férias, a amizade se ampara do jeito que dá. Autênticas buchas de canhão, nas trincheiras (que não avançam cem metros no terreno) a carnificina se intensifica. A rudeza e presença quase constante da morte faz de todos meros sobreviventes. Costumo afirmar que cenas de guerra nos descansam a visão, naquela confusão de inimigos destroçando e sangue espirrando na tela o tempo inteiro. Naquele ambiente nauseabundo de lama, sangue e pólvora, com gritos desordenados e fios de existência esvaindo-se a cada segundo, algumas cenas ainda nos conseguem chocar.
Como um tanque de guerra moendo um soldado, esparramando vísceras por toda parte. O protagonista, soldado Paul Bäumer (cinzamente interpretado por Felix Kammerer, explico aqui o ajuste na adjetivação: a sua performance é tocante, mas não dá para utilizar adjetivos tais como “brilhante” nesta película). Mas voltando: ele depara-se com uns óculos do que antes fora o seu amigo, explodido por uma granada. Combater com rifle um demoníaco tanque de guerra com os seus dentes e roldanas de aço que literalmente passam por cima da trincheira. Bombas. Mais granadas. O cenário perfeito do horror! Água potável não se encontra em quantidade suficiente, daí beberem lama. A chuva castiga o front europeu e as trincheiras transformam-se em rios.

Quando já ficamos na poltrona tiritando de frio e com um gosto de barro na boca, a civilidade visita-nos em planos governamentais e de generais que apenas mexem as suas peças no tabuleiro, sem dele participar realmente. São refeições extravagantes em mesas enormes, o cálice de vinho sendo degustado pelo comandante alemão com ar superior. O famoso vagão já aparece entre cenas, o que nos faz compreender que o ano é 1918 e a guerra está quase no fim, vencida pela exaustão.
No vagão, um diplomata alemão consciencioso, Matthias Erzberger bem vivido por Daniel Brühl, contemporiza o pedido pelo fim do conflito. Os franceses são irredutíveis ao propor o armistício, mas com todas as condições impostas por eles. A Alemanha e o Império Austro-Húngaro estão sumariamente derrotados.
Antes da capitulação final, mais cenas horripilantes da matança, como a de um pedaço de corpo que está dependurado numa árvore. O nosso protagonista, enlameado até à alma, se engalfinha com um inimigo e, nos estertores da agonia deste, o foco da câmara dá-se para este diálogo. No matar ou morrer, quando este mata para sobreviver, vê o inimigo engolfar-se no próprio sangue, tenta estancar os buracos pelo corpo e até concede água (lama) na boca do infeliz. Vasculha o seu uniforme para se dar conta da caderneta e do retrato da sua família, este inimigo tão igual a ele próprio e aos seus amigos.

Repasto como o de um ganso roubado numa fazenda próxima, tendo que fugir de tiros, concede-nos uma pausa para conversas triviais acerca do que se fazer quando retornar à vida civil. O iletrado que pede ao nosso protagonista para que leia a carta da esposa, quando este fica a par da morte do filho deste, o soldado que se refugia conversando com uma atriz encontrada numa fotografia de revista; sensibiliza ver os planos dele para com o encontro futuro deles e assim a coisa flui na antecâmara do inferno.
Por falar nele, o cenário foi todo realizado na República Checa, num terreno baldio que com chuva e lama caracterizou bem o caos vivido por buchas de canhão naquele conflito. Remake de outros dois filmes, um do ano de 1930 (a preto e branco, mudo e doravante clássico para os cinéfilos), outro do ano de 1979, esta megaprodução alemã do ano passado justifica-se, baseado no livro de Erich Maria Remarque, um clássico da literatura alemã que ainda bem, perdura. É sempre bom conhecer o passado para não cometermos os mesmos erros no presente. Embora neste quesito a Alemanha tenha reincidido, tristemente.
Disponível na Netflix, este filme foi uma das estrelas na última Cerimónia dos Óscares, tendo levado as estatuetas de Melhor Filme Internacional, Fotografia, Direção de Arte e Banda Sonora Original. Uma película que nos impregna de chacinas e de comportamentos deploráveis, com a informação de tantos milhões de mortes sendo que não avançaram terreno nem de um lado e nem de outro, e se os alemães tentavam ser kamikazes, nem todos, felizmente, o certo é que um soldado medíocre ferido naquele conflito se transformaria no artífice da outra grande guerra. Hitler não é citado neste “All Quiet on the Western Front”, uma vez que ali já se apresentam desgraças suficientes.
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