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Porque A Arte Somos Nós

A dor de uma perda pode consumir-nos de tal forma que, por vezes, não restam motivos para continuar a nossa jornada pelo mundo. Não porque estávamos/somos dependentes desse elemento que partiu, mas porque a nossa vida parece perder todo o sentido sem ele. Este sentimento funciona como resultado de nos sentirmos melhores pessoas com essa pessoa ao nosso lado, servindo ela, muitas vezes, como um catalisador de felicidade, amor próprio, ou humanidade.

Além disso, esta perda que eventualmente sofremos pode surgir após uma grande infelicidade, isto é, algo que não parece justo e que, noutras circunstâncias, poderia ser evitado, uma força que expande ainda mais todo o sentimento de revolta perante o acontecimento. É neste panorama emocional que vive Geppetto (voz de David Bradley), personagem do filme “Guillermo del Toro’s Pinocchio” (2022) — “Pinóquio de Guillermo del Toro” em português —, realizado por Guillermo del Toro e Mark Gustafson, estando disponível no catálogo da Netflix.

Como o próprio título do filme indica, este é um projecto com a cara e liderança de Guilhermo del Toro, que sempre teve o desejo de fazer a sua própria adaptação da obra original de “Pinocchio” (1940), sendo que, importa realçar, entre o começo dos trabalhos para a obra e a sua conclusão, levou quinze anos de muito esforço e dedicação. Del Toro que divide o argumento do filme com Patrick McHale e Matthew Robbins, que se basearam, naturalmente, na obra literária de Carlo Collodi.

“Guillermo del Toro’s Pinocchio” (2022)

Pinóquio que é o resultado de uma produção em stop-motion, o que torna todo o trabalho em volta do filme e o produto final ainda mais belo e digno de enaltecimento. No entanto, a força maior desta obra reside na forma soberba com que consegue conjugar mensagens humanas, intelectuais e universais, a partir de uma emotividade e sentimentalismo soberbos, conseguindo, ainda, respeitar a essência da história original, oferecendo-lhe um novo sentido.

Com efeito, Geppetto vê a sua vida deixar de ter sentido após uma perda significativa e, para imortalizar a memória deixada para trás, decide construir um boneco de madeira, Pinocchio (voz de Gregory Mann), que por magia ganha vida. Pinocchio tem, agora, de aprender a lidar com as diferenças, adaptar-se a uma nova realidade. Realidade, essa, repleta de preconceito, na qual tudo o que é diferente do habitual é motivo de crítica ou gozo.

Uma das grandes questões que se levanta no filme neste momento é: até que ponto Pinocchio conseguirá preencher o vazio de Geppetto? Muitas vezes, ao longo da nossa vida, optamos por escolher atalhos para lidar com a nossa dor, e muitos deles são simplesmente artificiais e não nos permitem lidar com a dor em si, apenas servem como forma de a camuflar e reprimir, e isso é um grande problema pois mais tarde tudo virá ao de cima ainda com mais força.

Pinocchio (voz de Gregory Mann)

Por outro lado, até que ponto é que Pinocchio vai ser capaz de lidar com o facto de ser diferente e de, por mais que se esforce, ser mais a representação de algo do que propriamente o seu significado, individual e autêntico? A obra ao tocar nestes pontos consegue elevar muito daquilo que é a sua matéria humana e intelectual, acrescentando uma profundidade social concreta a todo o seu argumento.

Decerto, há uma personagem deveras importante para ir orientando Pinocchio na sua jornada de auto-conhecimento, nomeadamente, o Grilo (voz de Ewan McGregor), que, aquando da “humanização” de Pinocchio prometeu olhar por ele com a sua sabedoria. Esta personagem acrescenta um enorme dinamismo à narrativa, além de introduzir também a vertente mais cómica da história, que resulta em pleno. Assim, em momentos de maior confronto e desorientação, o Grilo funciona como uma espécie de consciência de Pinocchio, algo que metaforicamente é muito significativo para a mensagem do filme.

Quando Pinocchio, através da sua inocência, se vê a distanciar-se de Geppetto, o filme acaba por explorar uma outra mensagem bastante relevante: a ideia de que, muitas vezes na nossa vida, só acabamos por dar real valor às coisas na sua ausência ou quando estas nos parecem inacessíveis. Com isto, também é interessante pensar como é importante, nas relações humanas, nos afastarmos de algo quando há um conflito e olharmos para dentro, evitando as comparações e a necessidade de compensarmos emocionalmente o que quer que seja.

“Guillermo del Toro’s Pinocchio” (2022)

É caso para dizer: toda a dor é inevitável, mas o sofrimento é sempre opcional. Ou melhor: “Quando se perde uma vida, outra tem de crescer“. Este é um dos motes da narrativa. Neste ponto, Geppetto percebe que jamais poderá transformar Pinóquio em alguém diferente daquilo que ele é, e aqui está também uma mensagem muito forte sobre a questão da identidade humana e sobre a força de abraçarmos exatamente aquilo que somos.

Outra questão que o filme toca diz respeito à temática da vida eterna, e até que ponto, hipoteticamente, seria inteligente escolhermos viver para sempre (?). Não será que o próprio sentido de existirmos seria quebrado no preciso momento em que deixássemos de ser mortais? Isto porque a vida e a morte, por mais que sejam opostos, estão amplamente conectados. Pois: “A vida pode trazer muito sofrimento, e a vida eterna pode trazer sofrimento eterno“.

Assim, “Guillermo del Toro’s Pinocchio” afigura-se como um filme simplesmente genial, sublime nas suas mensagens, profundo nas conexões que estabelece, bonito na forma e muito forte em conteúdo. Um ensaio sobre as relações humanas (sobretudo entre pai e filho), com um carisma tão próprio e tão puro, mesmo sendo um remake. É caso para dizer que nesta obra foi possível respeitar a história (original) de Pinóquio e, ainda assim, reinventar o que havia para ser reinventado. À luz de um argumento brilhante, estamos perante um filme emocionalmente inesquecível.

Tens de dar o teu melhor e isso é o máximo que alguém pode fazer.

(Grilo)

Às vezes, as pessoas têm medo de coisas que não conhecem.

(Geppetto)

Tiago Ferreira

Rating: 4 out of 4.

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