Certos livros são apresentados sob circunstâncias inusitadas e “Eu, Minha (Quase) Namorada E O Guru Dela”, de William Sutcliffe (Editora Record, 2010, 303 páginas) foi um destes. O texto da contracapa informa:
“Liz está se sentindo em casa na Índia. Ela abraça os pedintes e acredita que está no caminho certo para explorar todo o seu eu sexual. Dave percebe que detesta Liz e só consegue desejar karma ruim para os seus companheiros de viagem: Jeremy, cuja jornada espiritual conta com cheques enviados pelo pai, Jonah, um maluco que não usa sapatos há mais de uma década, além de Fi e Caz, que se acham o máximo por terem passado um tempo lavando os pés de leprosos em Udaipur…“
A minha circunstância deu-se quando precisei de empreender uma viagem de autocarro de um Estado para outro, saindo de Conselheiro Lafaiete (cidade de Minas Gerais) rumo a São Paulo. 587 km e muita paciência, pois o autocarro para em algumas cidades pelo caminho e alegremente apelidamos o transporte de “cata-jegue”. Mas vá lá. Vi o livro, diagramação boa para ler em movimento e se estava no inferno, por que não dançar com o capeta? Fui ler. A leitura correu fluida e só na primeira parte da viagem 130 páginas haviam sido vencidas.
Dave é o narrador protagonista. Estudante secundarista do sul da Inglaterra, juntou uma grana num emprego como atendente na Suíça e sem projeto nenhum para passar as férias, aceitou o inusitado convite de Liz para excursionarem à Índia. Acredito que se ela tivesse proposto o Peru, o Uzbequistão ou o Congo Belga, daria no mesmo. Percebe-se logo de caras uma atração dele por ela, que vem a ser a namorada do seu melhor (melhor?) amigo. Este, descolado, empreende uma viagem sozinho e Dave vislumbra momentos agradáveis ao lado da rapariga.

Mas, se existe uma estação do inferno na Terra, certamente ela fica na Índia. O calor é insuportável, a sujeira é deprimente, os meios de transporte são caóticos. À medida em que ia lendo, sentia-me no Primeiro Mundo da Civilização Ocidental viajando no meu autocarro que não é lá essas coisas. Vencidos os primeiros obstáculos, Dave (implicante com tudo) percebe que Liz é uma chata sem noção e o clima fica tenso. Ainda mais quando ela se enamora por Jeremy, um inglês radicado há muito na Índia e que faz o papel de sabe-tudo, conquistando Liz. A explicação dele do porquê não é aconselhável dar esmolas é aterradora: são teias de crime organizado que utilizam as crianças para esta finalidade.
Dave continua a implicar com tudo e ao ser apresentado ao casal de lésbicas Fi e Caz o clima esquenta de vez. Elas já estão ambientadas à Índia e sentem-se evoluídas espiritualmente, lavando os pés de leprosos e suportando todas as mazelas com austeridade. Engraçadíssimas as cenas da ambientação e do ‘papo’ espiritual que aos olhos de um ateu são dignas de riso. A rutura é inevitável, e o clima esquenta mais quando Liz diz a Dave que ele é um chato, que as suas massagens eróticas e orgasmos não significavam nada e que ela na verdade amava o namorado, que não estava com ela naquele momento.
Humilha-o afirmando que o simples facto dele ter colocado o seu pintinho dentro da xoxota dela por três segundos não significava que eles haviam feito sexo propriamente dito. Acredito que todo rapaz tenha no seu currículo uma quase namorada chata (este que vos escreve lembrou-se imediatamente de uma, mas a vida segue).
Nem preciso escrever que à medida em que empreende a sua viagem sozinho, ele passará por infortúnios característicos: diarreia proveniente de uma intoxicação alimentar, que perdurou por mais de uma semana, com ele emagrecendo horrores. Vocês devem saber que isso é cólera, doença que pode levar ao óbito e foi graças a muito líquido e repouso que o nosso herói se conseguiu restabelecer.

Viajando em autocarros com distâncias que chegam a quase 2 mil km, Dave vai conhecendo pessoas, como um jornalista internacional e narra as tentativas de conversas com os nativos, que sempre cumprem o roteiro de lhe perguntarem de onde ele é, se é casado e se tem filhos. Quase um ritual. Mas é com Igor Boog, um holandês de Deft, que o salva num hostel, que ele empreende uma nova amizade e trava algumas boas conversações.
O reencontro com Liz em algumas paragens é inevitável, da mesma forma que a nada coincidente colisão que ambos têm no aeroporto (não esqueçamos que a data de retorno da viagem estava pré-estabelecida). Ela continua irritante e um pé no saco. Dave amadureceu à força, saindo-se muito bem com os seus acertos e erros, e na parte final do romance chuta o balde e desmascara Liz, afirmando ao melhor amigo que dormiu com ela.
Obviamente que leva um soco na cara num pub. São engraçados os apartes dos presentes julgando o caso e o certo é que o nosso protagonista entende que ritos de passagens são necessários e agora que ele está às portas da universidade, é chegada a hora de rompimentos e de fazer novos amigos.
Um livro ágil, divertido, um tanto descartável (devo admitir), mas que circunstancialmente me proporcionou um bem-estar na minha nada longeva viagem. Quando li os percalços de Dave, entendi que qualquer reclamação minha seria inoportuna.
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