Ano após ano o espectro da retórica sobre a saturação dos filmes de super-heróis adensa. O cinema de ação foi sequestrado quase por inteiro por senhoras e senhores de fatiotas a agir de forma sobre-humana. É uma tendência em plena fase de maturidade. Alguns têm, efetivamente, entregado escapismo musculado e, volta e meia, notas de complexidade moral e artística – “Capitão América: Guerra Civil” (2016) e “Homem-Aranha: No Universo Aranha” (2018) saltam à mente. No entanto, é impossível negar um certo déjà vu recorrente. A mecanização de uma estrutura narrativa que começa a ficar sem truques na manga.
“Black Adam”, a nova proposta do universo cinematográfico da DC, é um exemplo notável de como se pode nivelar por baixo um subgénero que vive tanto da imaginação e criatividade. Realizado pelo espanhol Jaume Collet-Serra, o filme encabeçado pelo ator Dwayne Johnson é um spin-off de “Shazam!“, que teve um charme passageiro em 2019, ano em que estreou. Uma cartada decente de uma franquia com um catálogo de poucos méritos. Em linha qualitativa está o objeto desta crítica, que promete remeter-se à sua insignificância sem primeiro fazer muito barulho com pancadarias e explosões.

A história começa com um prólogo, há cerca de 5000 anos, em Kahndaq, uma cidade fictícia que evoca as texturas geográficas próprias do Médio Oriente. A população é escravizada e forçada a trabalhar para um rei temível que procura pedras preciosas chamadas Eternium, de forma a forjar uma coroa que lhe confere poderes endiabrados. Um jovem, numa revolta malsucedida, é arrastado para a sua execução, até que no último instante é convocado para uma assembleia de feiticeiros (a mesma que vemos em “Shazam!”) que o transforma em Teth Adam, o herói libertador de Kahndaq. Reza a lenda que desapareceu depois de derrubar o rei.
Um corte rápido transporta a ação para a contemporaneidade, com Kahndaq a ser governada por uma associação de criminosos chamada Intergang. À semelhança do passado, a cidade precisa de um herói. A chama da esperança acende quando uma professora rebelde (Sarah Shahi) liberta por acidente Black Adam, que esteve durante estes anos completamente inanimado. Com uma postura de anti-herói, o protagonista não se demonstra imediatamente interessado em ajudar de forma ativa a causa da cidade. No entanto, o exército inimigo responde ao propósito de carne para canhão em prol das demonstrações de poder imaculado de Black Adam.
Seguem-se várias sequências de ação ocas que pouco ou nada divertem, porque além do parco desenvolvimento de personagens, a realização é estanque e desgastante. Há uma repetição e ausência de inovação coreográfica: golpes lançados para cima, velocidades supersónicas, golpes para baixo. É rapidamente notório que o filme não tem muito mais para oferecer no campo da fisicalidade. O que agrava o facto de os vilões apresentarem um total de zero riscos para a personagem título. Sintoma da irrelevância dramática que define esta experiência cinematográfica.

Pelo meio do caos, a Sociedade da Justiça é um ás de espadas inesperado. Nela entram Hawkman (Aldis Hodge), Dr. Fate (Pierce Brosnan), Cyclone (Quintessa Swindell) e Atom Smasher (Noah Centineo). O seu propósito? Impedir Black Adam de provocar caos indesejado. Pois segundo a narrativa da Sociedade, a personagem não tem motivações benignas. Não tardam a surgir diálogos mal-amanhados sobre o que é, na verdade, um herói. Matéria que o enredo não consegue, por certo, suportar. Porém, este conjunto de personagens revela-se algo útil para combater o némesis de Black Adam. Inimigo que se manifesta tarde e é, como expectável, unidimensional.
No departamento das interpretações, ninguém rivaliza a peculiaridade com que Zachary Levi desempenha a personagem central de “Shazam!”. São, de modo geral, monótonas no tom e francamente desinteressantes no conteúdo. Mesmo Dwayne “The Rock” Johnson, de quem não se espera proezas de atuação, está longe de exibir o charme de tempos idos, como vemos em “O Rei Escorpião” (2002). Agora limita-se à presença dominante e, neste caso, à expressão carrancuda permanente que alguém definiu como o carimbo da sua representação.
Com uma equipa de três argumentistas a assinar o texto que serviu de base ao filme, é espantoso como o resultado vai tão ao encontro de uma familiaridade que por esta altura já se confunde com mediocridade. Nem tenho curiosidade alguma em perceber como vão conjugar no mesmo universo cinematográfico a Sociedade da Justiça com a Liga da Justiça. As personagens habitam um ecossistema disfuncional, quer em termos micro como macro. Desprovido de lógica, emoção ou coesão. E, infelizmente, nada indica que lhe vão pôr um travão. Não é mais que combustível para alimentar o discurso de que este subgénero está a ficar deserto de ideias.
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