“Falta meia hora para jantarmos. Esta noite vem o Vignale. Estaremos apenas Blanca e eu. Os meninos desapareceram logo que souberam da visita. Não os culpo. Eu também teria fugido.
Em Blanca se operou uma mudança. Traz as faces coradas e não é artificial; a cor mantém-se mesmo depois que lava o rosto. Às vezes esquece-se que estou em casa e põe-se a cantar. Tem pouca voz, mas a maneja com gosto. Agrada-me ouvi-la. O que será que está passando pela cabeça dos meus filhos? Estarão no momento das aspirações ladeira acima?”
“A Trégua”
“A Trégua” (L&PM Pocket, 2008, 160 páginas), do escritor uruguaio Mario Benedetti (1920-2009) é um diário existencialista que conta a vida do funcionário de repartição de uma firma comercial, Martín Santomé. Perto dos 50 anos, viúvo e pai de três filhos, espera pela reforma e leva uma vida cinzenta e apagada. Reacionário, misógino e impaciente com os outros, é daqueles tipos que ficam a guardar o melhor da vida para desfrutar depois, mas quando se observa esquecem-se de viver.
Isabel, sua mulher, morreu aos 25 anos. Os seus filhos são Esteban (arredio e metido em negócios escusos), Jaime (gay que sofre na pele o preconceito do irmão e consequentemente do pai) e Blanca. Ao longo da trama, passeamos por Montevidéu, a capital do Uruguai. Visitamos os seus cafés, embarcamos nos seus autobuses e conversamos trivialmente com as pessoas. Essa vida melancólica do seu protagonista perfaz todo o diário, e a ver a personalidade de Benedetti, suspeito que ele faz a antítese da sua autobiografia.

Essa radiografia do homem mediano, com sonhos minúsculos, aguardando o melhor (que melhor seria este? Aprender a tocar violão, caminhar pelo balneário, ter mais tempo para ler o jornal, ficar na praça dando milho aos pombos?) para depois ser o resultado do seu microscópio.
Tudo isso é suspenso, daí “A Trégua”, quando a repartição agrega a jovem Laura Avellaneda, um sopro de esperança e de amor na vida insossa de Martín. O flirt inicia-se e o cavalheirismo do protagonista é tocante. Mesmo se colocando muitas vezes por cima da situação, e discreto no seu amor, abriga-se no seu ninho e o casal faz juras de amor eterno.
O deleite e as sensações são interessantes, pois acredito que muitos zombies caminham por aí esperando a sua trégua, o seu frio na espinha, a sua dor de barriga, a sua ansiedade, o seu medo. Estas são características também do amor e elas são interessantes. Mas a trégua é apenas uma trégua, e um desfecho surpreenderá os leitores que se aventurarem por este diário.
Publicado em 1960, assisti a uma versão cinematográfica de 1974 (ano de meu nascimento) e a retina foi agradada com o que viu. A película tem 1h48min e foi realizada por Sergio Renán. Com argumento de Aida Bortnik e Renán, traz no seu elenco Héctor Alterio (como Martín), Ana Maria Picchio (como Laura), Luis Brandoni, Marilina Ross (como a linda Blanca), Aldo Barbero, Oscar Martinez (como Jaime), ou Norma Aleandro. Fiquei a saber depois que o realizador fez uma aparição no filme, como namorado de Jaime.

Um complemento maravilhoso ao livro, um diário supostamente simples que, passados 61 anos, ainda se mantém atual a ver a nossa mediocridade, na grande maioria das vezes, para cuidar de tantas tarefas ordinárias esperando talvez viver numa posteridade. Quantos de nós não estamos a precisar de tréguas nas nossas vidas comezinhas? Findo com um relato íntimo de Sábado, 13 de julho:
“Ela está ao meu lado, dormindo. Estou escrevendo em folha solta, à noite a passo a limpo no caderno. São quatro da tarde, o final da sesta. Comecei a pensar numa comparação e terminei com outra. Está aqui, do meu lado, o corpo dela. Lá fora faz frio, mas aqui a temperatura é agradável, na verdade faz calor. O corpo dela está quase descoberto, a colcha e o lençol deslizaram para um dos lados. Quis comparar este corpo com as lembranças que tenho do de Isabel. Evidentemente, eram outras épocas. Isabel não era delgada, os seus seios tinham volume, e por isso caíam um pouco. O seu umbigo era fundo, grande, escuro, de bordas grossas.
Os seus quadris eram o melhor, o que mais me atraía; tenho uma memória táctil dos seus quadris. Os seus ombros eram cheios, de um branco rosáceo. As suas pernas estavam ameaçadas por um futuro de varizes, mas ainda eram bonitas, bem torneadas. Este corpo que está ao meu lado não tem absolutamente nenhum traço em comum com aquele. Avellaneda é magra, seu busto me inspira um pouquinho de piedade, os seus ombros estão cobertos de sardas, o seu umbigo é infantil e pequeno, os seus quadris também são o melhor (ou será que os quadris sempre me comovem?), as suas pernas são delgadas, mas muito bem feitinhas.
No entanto, aquele corpo me atraía e agora este me atrai. Isabel tinha na sua nudez uma força inspiradora, eu a contemplava e de imediato todo o meu ser era sexo, não havia por que pensar em outra coisa. Avellaneda tem na sua nudez uma modéstia sincera, simpática e inerme, um desamparo que é comovedor. Ela me atrai profundamente, mas aqui o sexo é apenas parte da sugestão do chamamento. A nudez de Isabel era uma nudez total, quase pura talvez. O corpo de Avellaneda é uma nudez com atitude. Para desejar Isabel bastava sentir-se atraído pelo seu corpo.
Para desejar Avellaneda é necessário querer a nudez mais a atitude, já que nesta reside pelo menos metade do seu atrativo. Ter Isabel entre os braços significava abraçar um corpo sensível a todas as reações físicas e capaz, também, de todos os estímulos lícitos. Ter em meus braços a magreza completa de Avellaneda significa abraçar, além disso, o seu jeito de rir, o seu olhar, o seu modo de dizer as coisas, o repertório da sua ternura, a sua resistência a entregar-se por completo e as desculpas por essa resistência. Bem, essa era a primeira comparação. Mas veio a outra, e essa me deixou mal, desanimado.
O meu corpo com Isabel e o meu corpo com Avellaneda. Que tristeza. Nunca fui um atleta, livrai-me Deus. Mas aqui havia músculos, aqui havia força, aqui havia uma pele lisa, esticada. E, acima de tudo, não havia tantas coisas que agora estão presentes. Desde a calvície desequilibrada (o lado esquerdo é o mais devastado), o nariz mais largo, a verruga no pescoço, até o peito com ilhas ruivas, o ventre retumbante, os tornozelos varicosos, os pés com uma incurável e deprimente micose. Diante de Avellaneda não me importa, ela me conhece assim, não sabe como fui.
Mas importa diante de mim, importa-me reconhecer-me como um fantasma da minha juventude, como uma caricatura de mim mesmo. Há, talvez, uma compensação: a minha cabeça, o meu coração, enfim, eu como um ente espiritual, quem sabe eu seja hoje um pouco melhor do que nos dias e nas noites de Isabel. Só um pouco melhor, também não convém se iludir muito. Sejamos equilibrados, sejamos objetivos, sejamos sinceros, seja o que for. A questão é: ‘Isso importa?’ Deus, se é que existe, deve estar fazendo sinais-da-cruz lá de cima. Avellaneda (oh, ela existe) está agora aqui embaixo, abrindo os olhos.“
Se queres que OBarrete continue ao mais alto nível e evolua para algo ainda maior, é a tua vez de poder participar com o pouco que seja. Clica aqui e junta-te à família!