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Porque A Arte Somos Nós

Eu explico. Mesmo não levando em conta todos os exemplares do livro escrito por você que vão perecer – os que vão virar polpa de papel porque não tiveram comprador, os que vão ser abertos, terão uma ou duas páginas lidas, receberão um bocejo e serão colocados de lado para sempre, os que vão ser esquecidos em hotéis de praia ou em comboios – , mesmo que não se leve em conta todos esses exemplares perdidos, precisamos de sentir que ao menos um exemplar será não apenas lido, mas cuidado, terá um abrigo, um lugar na estante perpetuamente seu.

O que havia por trás da minha preocupação com os exemplares de biblioteca era um desejo de que, mesmo que eu fosse atropelada por um autocarro no dia seguinte, esse meu primogénito tivesse um lar onde pudesse dormir pelos próximos cem anos, se o destino assim decretasse, e ninguém fosse cutucá-lo com uma vareta para ver se ainda estava vivo.

Trecho do livro

O romance “Elizabeth Costello” (Editora Companhia das Letras, 2004, 254 páginas) do Prémio Nobel da Literatura J. M. Coetzee, é composto por uma série de palestras proferidas mundo afora da escritora que leva o nome título, sendo notadamente um alter ego do autor. Septuagenária, reconhecida na sua profissão e porta-voz de temas e lemas, ela parece pouco ou nada confortável na pele da intelectual que deve dar respostas a um público acostumado a ideologias baratas. No transcorrer do livro, viajei para dentro pelo facto de ser filósofo e, sempre que tive e tenho a oportunidade de abordar um assunto para além das minhas obras, produzimos incertezas e desconfortos com as nossas dúvidas.

Como se aquilo que escrevêssemos fosse uma tábua de salvação e só isso, mais em busca de perguntas do que objetivar respostas. Mais do que o escritor, o conferencista depara-se com esses dilemas o tempo todo, pois, mesmo que o seu livro verse sobre uma ficção sem compromissado, haverá sempre o intercâmbio com a realidade nua e crua, até o questionamento se na segunda década do século XXI, num mundo hiper-conectado e com tempo escasso, existe espaço ainda para uma boa leitura.

O escritor sul-africano John Maxwell Coetzee

Existe sim. E lendo J. M. Coetzee, o mesmo autor de “Desonra” (já resenhado aqui) ficamos com aquela certeza de que a sua premiação com o Nobel foi justíssima. O facto de nos prender na leitura, fazer coesas palestras aparentemente desconexas e dar a isso identidade, aventar os dilemas da velhice e defender causas, algumas das quais perdidas, e não fazer proselitismo com isso, é mérito de Costello. Um dos lugares mais exóticos em que a preletora exerce o seu ofício é num cruzeiro marítimo e isso já dá a entender a sua notoriedade.

Mas a protagonista já chegou à idade em que não se admitem ilusões. Com perceção fria e olhar filosófico para os temas, a sua defesa do livro expressa no trecho que abre esta avaliação é emocionante. Por isso guardo as minhas obras na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Brasil, como registo de que por aqui passei, mas que fique lá guardado.

Vale a pena enumerar as palestras até como aperitivo para avançarem no prato principal: “Realismo”; “O romance na África”; “A vida dos animais (Um: Os filósofos e os animais)”; “A vida dos animais (Dois: Os poetas e os animais)”; “As humanidades na África”; “O problema do mal”; “Eros”; “No portão”. Ainda o pós-escrito “Carta de Elizabeth, Lady Chandos”. De saleintar a nacionalidade do autor, sul africano, e os temas referentes aos animais são os que mais se destacam nestas conferências. A filosofia permeia tudo, mais com dúvidas que certezas, o que aliás só nos indica a seriedade desta disciplina.

Leiam e degustem, não queria avisar que as conferências podem ser lidas separadamente, mas insisto para que sigam a ordem estabelecida.

‘Um esquilo não tem uma visão do mundo?’

‘Tem, o esquilo tem uma visão do mundo, sim. A visão do mundo do esquilo compreende bolotas de carvalho, árvores, variações do tempo, gatos, cães, carros e esquilos do sexo oposto. Compreende um sistema de como esses fenómenos interagem e de como ele deve interagir com eles para sobreviver. E só. Nada mais. Isso é o mundo segundo um esquilo.’

Marcelo Pereira Rodrigues

Rating: 4 out of 4.

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