OBarrete

Porque A Arte Somos Nós

Logo de caras, ao sabermos que Donald Sutherland e Helen Mirren estão a protagonizar uma película, convida-nos de imediato a viajarmos na história. Em “The Leisure Seeker”, do realizador Paolo Virzi, este drama/comédia de 1h53min lançado em 2017 levanta-nos muitas questões. John Spencer (Sutherland) é um professor de Inglês aposentado apaixonado por Ernest Hemingway. Ancião, está com Alzheimer e incontinência urinária, mas recita o seu autor predileto com desenvoltura. A grave enfermidade pelo menos poupou-lhe esse desgosto, ou desconfio que a literatura possa registar aquilo que um ser humano é de facto, transformando-se numa ponte confiável com a realidade.

Ella Spencer (Mirren) é uma inveterada dona de casa e tem adoração pelo marido, mesmo sabendo que se tem dedicado a cuidar dele como este fosse um miúdo. Começam a história viajando num antigo furgão meio a cair aos pedaços, sendo o alvo pretendido chegarem à casa que se transformou em museu de Hemingway, na Flórida. De antemão, sabemos que a química do casal ficará reforçada, e já ansiamos pelas trapalhadas ao longo do trajeto, nada muito difícil de acontecer.

Se eles se ousam em aventurar-se, os seus filhos Jane (interpretada por Janel Moloney) e Will (interpretado por Christian Mckay) preocupam-se em demasia, quase chegando ao ponto de histeria. Este último sonda até ligar para a polícia, desaconselhada pela mãe que a contragosto atende o telemóvel e pede solenemente para que ele não “encha a paciência”. O núcleo dos irmãos é ordinariamente real, em ações que certamente a maioria de nós teríamos com os nossos anciãos, ainda mais se percebêssemos que a decrepitude acompanha um deles.

Donald Sutherland (John Spencer)

Mas a aventura está garantida na estrada. O decrépito ainda consegue conduzir, somando-se a isso a sua desenvoltura para reler e citar o seu autor. Para nas lanchonetes à beira da estrada e trava colóquios com algumas estúpidas garçonettes (cenas hilárias). Chega a esquecer Ella num destes postos e ela tem que se sujeitar ao lugar de passageiro de uma mota para chegar ao esposo. A ele perdoa-se tudo, pelos motivos esclarecidos.

Quando são abordados por ladrões oportunistas na estrada, surpreendem e ao invés de entregarem a carteira com dinheiro, Ella aponta uma espingarda e John, alheio a tudo incomoda-se apenas com o mau uso da língua dos meliantes, e gentilmente sorrindo indica-lhes um supletivo para aprenderem a falar, tipo conjugarem singular e plural.

E assim a coisa vai, como é lógico este núcleo é o mais relevante e dramático do argumento. Com a proximidade mais que forçada, e com segredos guardados há muito (que são revelados), mesmo Ella desconfiando que o marido era um inveterado Don Juan. A relação azeda em algumas passagens e a arte de galanteio de John parece não ter sido afetada, pois este reconhece uma ex-aluna num parque de diversões, causando estranhamento à esposa, que dececionada o acusa de esquecer os nomes dos seus próprios filhos.

Helen Mirren (Ella Spencer)

O encaminhamento vai nos orientando a um não retorno. Ainda para mais o alvo da empreitada mostra-se dececionante, com a casa museu a servir de salão de festas e de casamentos, com muitos dos objetos do autor de “Por Quem os Sinos Dobram” (1940) a ficar em segundo plano, como as suas clássicas fotografias de pesca. É triste ver que sítios sagrados são vandalizados, pois seria a mesma coisa que eu ousar fazer um churrasco nos jardins da Maison de Balzac. Mas nem tudo está perdido, numa pastelaria Ella prepara-se para intervir, mas cede ao perceber que a entusiasmada garçonette faz uma referência aludindo a outro clássico de Hemingway, “O Velho e o Mar“. John excita-se como um miúdo.

A viagem é reveladora e surpreendente, embora previsível. Mais para o fim da trama, perguntava-me qual seria a saída de Ella para se preservar de tanto desgaste, claro, pela doença não intencional de John. O certo é que nem uma destacada vida no magistério, com o deleite de ler autores clássicos e ser um intelectual de renome, farão despistar a terrível doença que trabalha de modo a apagar aquilo que somos, aquilo que sentimos, amamos e pensamos.

Um passeio que nos permite viajar escondidos na parte de trás do furgão, sendo uma história reflexiva e instigante.

Marcelo Pereira Rodrigues

Rating: 3 out of 4.

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