OBarrete

Porque A Arte Somos Nós

Os dias duros, céus azuis sem nunca uma nuvem, um mar de azul, dia após dia, o sol boiando através. Os dias gordos – gordos de angústias, gordos de laranjas. Comê-las na cama, comê-las como café da manhã, comê-las como jantar. Laranjas, cinco centavos a dúzia. Sol no céu, sumo de laranja na minha barriga. Lá no mercado japonês ele viu-me a chegar, aquele japonês sorridente com cara de bolacha, e já foi pegando um saco de papel. Um homem generoso, me dava, quinze, às vezes vinte por um níquel.

— Senhor gosta de banana?

Claro, assim ele me deu umas bananas. Novidade interessante, sumo de laranja e bananas.

— Gosta de maçã?

Claro, daí ele me deu umas maçãs. Isto era novo: laranjas e maçãs.

— Pêssego?

Lógico, levei o pacote marrom até ao meu quarto. Grande novidade, pêssegos e laranjas. Meti os dentes nele até ao bagaço, o sumo escorrendo e chiando ao chegar ao fundo do meu estômago. Houve muito choro, e nuvenzinhas escuras beliscavam o meu coração.

O meu dever chamou-me até à máquina de escrever. Sentei-me diante dela, morrendo de pena de Arturo Bandini. Às vezes uma ideia flutuava coitadinha pelo quarto. Como um passarinho branco. Só me queria ajudar, meu querido passarinho. Mas eu o abato, crucifico-o no teclado da minha máquina, e ele morre nas minhas mãos.

Trecho do romance

“Pergunte ao Pó”, John Fante (Editora Brasiliense, 165 p.). Romance autobiográfico? Engana-se quem pensa que esta breve história é superficial. Direta, sim. Escrita enxuta e rápida, assemelhando-se a um argumento para cinema, o autor e a sua obra foram elogiados por ninguém mais ninguém menos que Charles Bukowski, o mestre na arte da descrição curta e direta.

O escritor nascido em Denver, no estado de Colorado, John Fante

Arturo Bandini é um escritor que vive numa pensão ordinária em Los Angeles e sobrevive de uma mesada da mãe e de eventuais depósitos de um editor de revista, J. C. Hackmuth. Orgulhoso do seu ofício de escritor, viu publicado oficialmente apenas um conto, “O cachorrinho riu”, numa revista literária conceituada, uma espécie de Barrete norte-americano, sendo Hackmuth uma espécie de Diogo Vieira. Espero não ser processado.

Tem como vizinho de quarto um decadente Hellfrick e apaixona-se por uma garçonette mexicana desmiolada chamada Camila López, que por sua vez se apaixona por um outro barman. Quando defino desmiolada, é devido ao facto de ela não ter interesse algum por leitura, e entendendo-se apenas como uma garçonette latino-americana, parece ter vergonha da sua nacionalidade e quando serve café frio ao escritor, despreza-o quando este reclama e mesmo que passe a cortejá-la na esperança de ser notado, é solenemente esquecido, sofrendo a humilhação extrema de ver o seu artigo da revista ser solenemente rasgado por ela, enquanto se ri juntamente com os amigos das coisas publicadas no papel.

O orgulho de Bandini sofre um duro golpe. Ela faz dele gato sapato, brinca com os seus sentimentos, usa-o descaradamente e até nos passeios pela praia e nas bebedeiras entrevê-se quase nada a possibilidade de um amor ser correspondido, ainda para mais quando o coração dela é destinado a outro, um colega que a despreza. Enfim, pouca confusão é ‘bobagem’.

O romance de John Fante foi adaptado ao cinema em 2006 pelo realizador e argumentista Robert Towne. Com o título original “Ask the Dust”, este filme destaca nos papeis principais Colin Farrell e Salma Hayek (na imagem)

 A narrativa franca e crua prende-nos do início ao fim, com passagens engraçadíssimas, como a do morto de fome Hellfrick que convida o protagonista a caçarem um bife, entram numa propriedade e matam um bezerro, para desespero de Bandini que se revolta com a crueldade do amigo ao ver os olhos da vaca mirando a sua cria morta.

Enfim, há várias passagens que destacam o ordinário, mas seduzem também com o sublime. Como no misto da personalidade do nosso herói, que católico reza à santa, mas dorme desajeitadamente com uma prostituta, mesmo sendo ele inexperiente nestes assuntos libertinos. Certamente modelo para muitos argumentistas que ilusoriamente tentam a vida de escritor em Los Angeles, acreditando serem melhores do que realmente são. E são tantos! Livro excecional deste norte-americano que é um dos grandes escritores do século XX nos Estados Unidos. Excelente!

A citação que abre esta análise caracteriza o dinheiro nenhum do escritor, o não reconhecimento, mas o ato sublime do chamamento da sua máquina de escrever para o seu ofício e a sua arte. Desenvolvendo histórias na tentativa de ser lido e reconhecido por tal, como a soberba que disfarça a barriga vazia para se dar a entender como um escritor. Sublime!

Marcelo Pereira Rodrigues

Rating: 4 out of 4.

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