Já pensaram em ver um filme sobre um músico e não ouvir uma única canção original deste? Talvez, mas isso não costuma correr bem… tal como aconteceu aqui. “Stardust – O Nascer de Uma Estrela“, título em português, é uma longa-metragem que aborda a primeira viagem de David Bowie, nome artístico de David Jones, aos Estados Unidos da América, em 1971. Ainda nem a película havia começado a ser gravada e já havia setas apontadas à sua narrativa, de modo que não foram dadas quaisquer autorizações para o uso de músicas, ou capas de álbuns oficiais, do artista David Bowie nesta obra. De forma não surpreendente, “Stardust” perde logo uma grande percentagem de interesse.
Vamos contextualizar: David Bowie havia editado no ano anterior (1970) o trabalho “The Man Who Sold The World”, um álbum claramente mais pesado e sombrio comparativamente a trabalhos anteriores e ao seu único sucesso até então, Space Oddity. Como tal, o artista não estava a ser bem aceite nas esferas mediáticas, sendo muitas vezes comparado a (incitado a ser como) Marc Bolan, o bem-sucedido vocalista e guitarrista da banda T. Rex, com o qual Bowie convivia. Como outros artistas já haviam experimentado, a fórmula do sucesso era só uma: conquistar a América. Como? Fazendo uma tour e apresentando o mais recente trabalho.
É nesta fase que começam a surgir os problemas e as aventuras de David Bowie, neste filme interpretado por Johnny Flynn. Este chega, em 1971, ao aeroporto de Washington, sozinho, à procura da única alma que acreditava no seu talento, Ron Oberman (Marc Maron). Ron é agente da Mercury Records, editora com a qual Bowie tinha contrato, e é responsável por arranjar novos concertos e entrevistas que permitam dar um ímpeto à carreira de David Jones. Este último parece não estar preparado para a realidade americana, fugindo das atenções através de memórias e medos intrínsecos acerca de uma possível condição esquizofrénica.

Ao longo da narrativa somos projetados pelos medos, memórias, ideias e dúvidas de David Bowie. Em certos momentos, estes timelapses podem parecer um pouco confusos. A título de exemplo temos o início do próprio filme: apesar de ser uma introdução algo cómica, mais à frente concluímos que não havia necessidade neste “adiantamento”, pois a cena que depois liga à introdução mostra-se desconectada e algo perdida. Nesta vertente, a realização de Gabriel Range consegue ser minimamente satisfatória, o problema prende-se mesmo com o rumo que a história leva, assim como o facto de não ouvirmos uma única criação de Bowie.
No que toca ao argumento, este esteve ao encargo de Christopher Bell e do próprio Range, e aqui é que as coisas correm mal. Claramente “Stardust” pretende demonstrar o fracasso da viagem de David aos Estados Unidos ao mesmo tempo que desmonta uma personalidade perturbada e excessivamente obcecada pelo seu irmão mais velho, Terry (Derek Moran). Este último sofria de stress pós-traumático após uma bad trip de ácidos, sendo que após outro diagnóstico lhe foi revelado a doença de esquizofrenia, de modo que Terry estava internado num hospício próprio para pessoas com esta condição.
Deste ponto de vista, “Stardust” estabelece uma ligação constante entre o passado e o presente negro de David Jones, assim como o insucesso do artista David Bowie, resultando nas falhas de comunicação e numa grande crise de identidade. Ao longo do filme, por mais que uma vez, é levantada a seguinte questão: “Quem é David Bowie?” Uma pergunta que, a meu ver, nem o próprio realizador sabe muito bem responder.

Como espectadores somos obrigados a ter uma visão um pouco mais ampla: estamos em 1971, a carreira de Bowie está numa fase de mudança, existem vários fatores sociopolíticos, principalmente nos EUA, e um artista juntamente com o seu background pessoal molda-se e cria consoante todas estas vertentes e inspirações. É verídico que a digressão de David foi um fracasso, muito por culpa de não ter autorização para atuar como artista no espaço americano, acabando por se “contentar” com algumas festas e eventos privados.
Numa das cenas de “Stardust”, David está no meio de uma sala com a sua guitarra a tocar Amsterdam, uma canção de Jacques Brel que o britânico incluía nas suas setlists. É também verídico que este episódio aconteceu mesmo, em Hollywood, com a noite a acabar numa outra casa ao som de Joni Mitchell em carne e osso. Vivia-se a contracultura e o destronar da geração hippie. A música Changes é um excelente reflexo disso mesmo.
Bowie aparece na América precisamente durante a “erupção do vulcão”, chegando mesmo a conhecer o artista plástico Andy Warhol e alguns membros dos Velvet Underground, como Lou Reed (a cena em que David assiste ao concerto dos Velvet é no mínimo estranha, pois a montagem do cenário não nos desprende do estúdio, assim como é duvidoso o facto de David ter conhecido o “Lou Reed errado”). Com isto, é no mínimo estranho não haver qualquer alusão ao seu próximo trabalho, “Hunky Dory”, um álbum decisivo na carreira do músico, mas sim uma pressa desmedida em desvendar o novo alter-ego de Bowie: Ziggy Stardust.

A fórmula final desta narrativa é previsível e desanimadora, pois simplesmente vemos um acumular de situações que levam Bowie a mudar radicalmente de identidade, um “clímax” que chega com uma performance ao vivo que fecha o filme. Mais uma vez, não temos nenhuma música de David Bowie, retirando qualquer credibilidade à obra ao verdadeiro fã do artista. A caracterização do personagem principal é positiva, seja a nível de guarda-roupa ou até aos dotes de Johnny Flynn em ter uma dicção idêntica à de David – o facto do ator ser também músico ajuda. Contudo, em sentido contrário vão as representações de Marc Bolan (James Cade) e Mick Ronson (Aaron Poole), dois ícones dos anos 70.
Em jeito de conclusão, “Stardust” optou por embarcar numa ficção constantemente ligada ao passado de David Bowie, mas pouco ou nada se importou em tentar ser claro no percurso artístico do cantor. Não querendo parecer injusto, penso não ser admissível ignorar certos marcos na carreira de um artista que é o foco principal de toda esta história, e só olhar para a sua decadência mental e pessoal para justificar um marco na sua carreira. A questão da relação que David desenvolve com Ron é outro porto de abrigo de Gabriel Range, mas tenho certas dúvidas que este quisesse fazer desta longa-metragem uma road trip banal.
Infelizmente, para quem é fã de David Bowie, este filme pouco ou nada acrescenta. Para quem é fã de cinema, é uma obra que não ficará na memória (nem no ouvido).
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