Metade do século XIX, fronteira da costa este dos Estados Unidos da América, Abigail e Dyer são um casal com uma vida bastante pacata – uma tranquilidade alegrada pela filha de ambos, Nellie. Colher os alimentos para a próxima refeição, cuidar dos animais e beneficiar do seu leite e dos seus ovos, trabalhar a terra e construir as infraestruturas necessárias. Um estilo de vida sustentável cheio de princípios. Este é o cenário apresentado à medida que Abigail, muito bem interpretada por Katherine Waterston, nos narra um estado de espírito frágil e infeliz, numa espécie de entrada de diário onde o espectador penetra o espírito desta mulher.
Abigail tem uma relação bastante cordial com o seu marido Dyer, papel interpretado por Casey Aflleck de forma consistente mas um pouco distante, um homem que baseia os seus princípios de vida na Bíblia e parece não ter muitos interesses para além do trabalho. Parte da frustração de Abigail deve-se a esta frieza por parte do companheiro. Contudo, um evento drástico muda para sempre a vida do casal: a morte da sua filha Nellie, numa curta interpretação da jovem atriz Karina Ziana Gherasim. A partir deste momento um fosso é cavado na frágil ligação do casal, abrindo espaço a uma nova aventura bastante intensa.

Um casal idêntico ao de Abigail e Dyer chega para trabalhar a terra e criar animais, com os novos vizinhos a serem prontamente hospitaleiros. A principal ligação estabelece-se através de um olhar entre Abigail e Tallie (performance exímia de Vanessa Kirby), duas mulheres que encontram uma na outra o companheirismo e a atenção que ambas necessitavam para combater a carência constantemente deixada pelos seus maridos. O companheiro da recém-chegada é Finney (Christopher Abbott), outro homem dentro da mesma linha de Dyer, contudo, mais radical no que toca aos ideais católicos e ao próprio papel da mulher como esposa. O que acabará por se refletir em atitudes reprováveis.
Abigail e Finney depressa se dão bem, com as visitas desta última a tornarem-se uma constante ao longo de toda a narrativa. Se por um lado Abigail encontra alguém em quem pode realmente confiar todos os seus medos e vontades, Finney foge da monotonia de ser uma esposa presa numa gaiola. Enquanto uma procura, a outra deseja ser encontrada. A química entre as duas vai evoluindo a um ritmo bastante poético. Adjetivo em consonância com o trabalho de Mona Fastvold, que demonstra o seu talento na realização da sua segunda longa-metragem. Já a história é baseada no livro de Jim Shepard, com o mesmo título.
O cenário é rústico e familiar. Os planos procuram deixar sempre espaço para toda a envolvência natural. O ordenhar das vacas, as tempestades de neve, a lareira, o depenar as galinhas… Simbolismos que nos permitem esquecer todo o caos da cidade e fugir para um sítio que associamos a tranquilidade, a atividades que nos trazem algum sentido à vida. Ou pelo menos assim devia ser. “The World to Come” é a dura realidade, e dura porque há outros problemas associados.

A obra não tenta ser uma bandeira dos direitos homossexuais, mas sim mais uma chamada de atenção à opressão sofrida por muitas mulheres no seio familiar. Por vezes, certos eventos marcam-nos para sempre, noutras situações é a falta de qualquer evento que nos aflige cada momento passado nesta vida. O que acontece entre Abigail e Tallie é mais forte do que tudo o que possamos contestar. São duas peças que se encaixam na perfeição e que simplesmente tiveram que se deixar levar pelos seus sentidos espirituais e carnais. Tudo acontece de uma forma bela, com pequenas conquistas tais como a prenda de Tallie a Abigail: um Atlas, sinónimo de conhecimento.
A própria Abigail “nos conta”, ao início, que a sua aprendizagem autodidata é o que lhe permite aguentar os dias melancólicos que vive. À medida que os dias passam, a relação entre as duas protagonistas é como uma chama que aquece toda esta história. Paralelamente, estas distanciam-se cada vez mais dos seus maridos, que ao longo da narrativa têm um papel bastante distante e pouco exigente. Diria mesmo pouco relevante, apesar de necessários. Casey Affleck é também produtor de “The World to Come”, e realmente penso destacar-se mais por isso do que propriamente pela representação de Dyer que, apesar de tudo, cumpre a sua função.
Ainda dentro de um prisma menos positivo, o filme parece focar-se demasiado na relação Abigail-Tallie, deixando passar em claro algumas personagens que poderiam acrescentar mais intensidade à trama (aqui falo dos próprios maridos). Não que falte drama ou romance à história principal, mas o subtexto poderia ganhar outro impacto em certas passagens, mais precisamente na compreensão do passado de certas pessoas e no verdadeiro impacto da perda de uma criança.

As cores escuras contribuem para uma certa atmosfera depressiva, que tende a desvanecer a partir do momento em que Abigail e Tallie estão no auge da sua relação. Um filme que comunica muito com olhares e gestos, deixando o diálogo maioritariamente para a narradora Abigail. As palavras de Tallie, muitas delas, são como pequenos poemas, uma qualidade lírica por esta provada. Tal como começou, a tragédia adivinhava-se. “The World to Come”, assim como o título menciona, fala sempre do que está por vir, pois não podemos ficar agarrados a um passado repleto de perdas, palpáveis ou não-palpáveis. Mas, afinal, onde fica Tallie aqui no meio?
Esta última é uma passagem feliz. É um passado, presente e futuro, tal como tudo o que acontece na nossa vida. É uma história trágica onde a atração física simboliza o amor possível por outra pessoa, independentemente de onde veio, para onde vai, do seu sexo, do meio que a rodeia, pois simplesmente devemos viver e partilhar as tristezas e as alegrias com quem mais desejamos. De luto em luto, Abigail viu-se incapaz de comunicar a sua vida, sentindo a necessidade de nos contar tudo através de palavras escritas. Uma verdadeira história de amor.
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