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Porque A Arte Somos Nós

Algumas vezes, desde que começara a viver livremente, Abel perguntara a si mesmo: ‘Para quê?’. A resposta era sempre clara e também a mais cómoda: ‘Para nada’. E se o pensamento insistia: ‘Não é nada. Assim não vale a pena’, acrescentava: ‘Deixo-me ir. Isto há de ir dar a algum lado’.

Bem via que ‘isto’, a sua vida, não ia dar a parte alguma, que procedia como os avarentos que amontoam o ouro só para terem de o contemplar. No seu caso não se tratava de ouro, mas de experiência, único proveito da sua vida. Contudo, a experiência, não sendo aplicada, não rende, é inútil. E de nada vale a um homem acumular experiência como se colecionasse selos.

As suas poucas e mal assimiladas leituras de filosofia, ao acaso dos compêndios escolares e das brochuras desenterradas da poeira dos alfarrabistas da Calçada do Combro, permitiam-lhe pensar e dizer que desejava conhecer o sentido oculto da vida. Mas nos dias de desencantamento da sua existência, já lhe acontecera reconhecer que semelhante desejo era uma utopia e que as experiências multiplicadas apenas serviam para tornar mais denso o véu que pretendia afastar.

A falta de sentido concreto da sua vida forçava-o, porém, a firmar-se naquele desejo que já deixara de o ser, para se transformar numa razão de viver tão boa ou tão má como qualquer outra. Nesses dias sombrios em que o rodeava o vácuo do absurdo, sentia-se cansado. Procurava atribuir esse cansaço à sua luta diária para assegurar a subsistência, à depressão causada pelas épocas em que os meios de subsistir se reduziam ao mínimo.

Com 31 anos, moço ainda para a literatura, certo autor envelopa e envia o seu original para uma importante editora de Lisboa. Passam-se mais de 20 anos e a editora não se digna nem a dar uma resposta. Prática muito em voga na maioria das editoras mundo afora. Certamente para não darem falsas esperanças, vá saber. O seu autor dá o livro como perdido e renega aquela obra, quando a sua celebridade como escritor já é notória e certamente publicar aquele determinado trabalho seria tarefa fácil. O enredo, que parece uma trama literária, é referente a José Saramago e ao seu livro “Claraboia”, publicado após a sua morte.

O escritor português José Saramago

O autor terminou a cópia a cinco de janeiro de 1953, um dactiloscrito de 319 páginas, e assinou com o pseudónimo Honorato. A editora brasileira Companhia das Letras informa que publicou fielmente o original, e as suas 377 páginas são agradáveis de se ler numa diagramação muito bem-feita e, detalhe: na forma de escrever, no estilo, ainda é um livro à moda antiga do seu autor, onde os pontos e travessões são respeitados e confesso que senti certa estranheza de estilo. Mas o que importa é a história, e ela é incrível.

Tudo se passa num pequeno prédio pobre em Lisboa, onde no térreo fica o sapateiro Silvestre, que calha de alugar um quarto para o forasteiro Abel. Antes de falar deste, vamos dar um saltinho aos outros condóminos? Adriana e Isaura são duas irmãs muito afeitas às artes e à cultura, sendo a primeira uma grande ouvinte de música clássica, a segunda adora romances e passa a vida a viajar nos livros. Elas moram no último andar.

Um casal infeliz pela morte de uma filha vive às turras e Lídia é uma mulher de vida fácil, sustentada por Paulino, dono de uma empresa que contrata Maria Cláudia, a Claudinha, por intercessão da amante. O que esta não sabe é que o homem está a fazer flirt e a dar passos mais avançados na captura da jovem estenógrafa. Claudinha também mora no prédio, a filha de Anselmo e Rosália.

A espanhola Carmen é a outra moradora do térreo, casada com o caixeiro viajante Emílio. O casal tem um filho, Henrique, que está acometido de angina benigna e acamado. Já que o casal é infeliz, o marido só não abandonou ainda a casa por amor ao filho. Essa convivência medíocre é o cerne do romance; cabe a Abel ser o contraponto a este universo, mesmo sendo ele um rapaz sem eira nem beira, mas que carrega no seu espírito dotes literários, sendo um contumaz apreciador dos trabalhos de Fernando Pessoa e Dostoievski.

O poeta português Fernando Pessoa

O sapateiro Silvestre é o seu interlocutor mais loquaz, sendo que estes discorrem sobre política, situação económica, filosofias e comportamentos. Casado com a gorda Mariana, é um ávido leitor de jornais e um leitor crítico, sabedor de que a imprensa divulga apenas os assuntos que lhes interessa, escondendo outras informações. Lia o jornal de cabo a rabo e tinha sempre assunto para discutir com o seu hóspede. Este também era o seu adversário no jogo de damas.

Numa das cenas mais engraçadas e dramáticas do romance, ao saber que o seu marido Caetano estava a tomar-banho e a espiar para a casa-de-banho do apartamento ao lado, sendo Lídia o alvo, a magra e sem atrativos Justina exaspera-se e lança-lhe insultos dos mais ferozes, afirmando que Lídia era carne muito fina para ser mordida por um verme tão desdentado (modo de escrever) e ficamos na iminência do injuriado desferir socos partindo os ossos da esposa, mas ele recua no último momento suportando as dores das ofensas.

Como os moradores se tentam agradar uns dos outros, o senhor Paulino Morais é agraciado com uma carta anónima que lhe informa que a sua protegida estava a ter um caso com o forasteiro Abel, sendo que este na verdade só tinha olhos para Claudinha, sendo-lhe, porém, impossível a aproximação.

Descrever mais seria comprometer a leitura deste bom livro, o qual os críticos consideram uma obra menor, embora eu não concorde. “Claraboia” é um título bastante apropriado, pois trata-se do caleidoscópio onde todos podem observar todos, mas senti que a voz omnisciente do narrador é a de Abel que, vindo de longe, consegue observar com mais nitidez todos os dramas. E viajando um pouco mais, essa voz filosófica e existencial colocada no personagem de Abel é na verdade Saramago, sendo a metáfora do sapateiro Silvestre os leitores que se dignam a ler e a entender um pouco mais essa vida complexa, parcialmente abordada no trecho que inicia esta crítica.

Um livro gostoso de se ler.

Marcelo Pereira Rodrigues

Rating: 3 out of 4.

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