Vou-lhes contar a minha história de morador de rua durante três dias frios. Saí de casa por volta das 19 horas, com uma calça de moletom rasgada e velha, uma blusa de lã suja e velha, levando uma caixa de papelão e um cobertor fino. Estava com um gorro velho e com a barba por fazer. Não levei dinheiro nem documentos. Dirigi-me à praça da rodoviária da minha cidade e por lá me detive.
Desfiz a caixa de papelão. Encostei-me numa árvore e fiquei por ali. 16 graus. Aos poucos, aproximaram-se de mim outros desvalidos moradores de rua. Um casal com uma filhinha e dois outros senhores. A mulher perguntou:
— O que faz aqui moço tão bonito?!
Despistei e não respondi. Afirmei que me havia esquecido do meu nome. O senhor perguntou se eu estava com fome. Respondi que ainda não. Também não respondi quanto tempo ficaria ali. A garotinha sorriu para mim. O casal foi para a sua tenda improvisada. Fiquei ali, imerso no tempo e sentindo a temperatura a esfriar. Caminhei um pouco pela praça e de longe observei o relógio digital de uma avenida à frente anunciar 14 graus, lá pela meia-noite chegou aos 10. O frio doía na espinha.
Voltei ao meu papelão. Senti que estava húmido. Urina de cão? Não, infiltração mesmo. Mesmo assim, sentei-me. Fiquei à espera. Da tenda improvisada, saiu o senhor com uma garrafa de cachaça. Ofereceu para que eu assim esquentasse. Senti os meus dentes a bater. Tive dificuldades para engolir o álcool. Bebi. O senhor pediu-me:
— Posso deixar a minha filha aqui um pouco? Devido ao frio, vou trepar com minha mulher.
Fricção. Fricção de corpos. Interessante! Respondi que sim, um minuto depois veio a menina, sonolenta, envolta de um fedorento cobertor. Deitou-se ao meu lado. Acordou. Conversou. Chama-se Ingrid e tem seis anos. Conta a história da sua vida. Sorri, pois a sua história de vida é toda ela construída na miséria, por isso, não tem parâmetros de outros modos de vida.
Ingrid chama um cão que passa na rua. Diz ser dona dele. Pergunto o nome do cachorro. Ela diz “Til”. Til chega e já se vem assanhando, alegre e balançando o rabo. Encosta-se e deita-se também no papelão húmido. Ficamos ali e sinto o meu estômago a doer, agora sim, sinto fome. Pedir esmola? Será que conseguiria? Sim, estou com bastante fome.
Tento concentrar-me em Ingrid, em mais um cachorro que chega e ouço ao lado na tenda os sussurros de uma fricção que objetiva o aquecimento. Ingrid cochila. Sinto fome, frio e a minha cabeça parece estar à roda. É quando sai da tenda a senhora, arrumando o vestido e me oferece um pedaço seco de pão de sal. Pego o alimento. Mordisco. Aos poucos, para enviar ao cérebro a mensagem de que me estou a alimentar. Dói-me o fundo da barriga, sinto os meus ossos gelados.
Nos três dias, não pedi esmolas. Vivi das ofertas dos desvalidos e dos passantes. Um ofereceu-me cinco reais e uma bondosa senhora atirou-me moedas. Banho não tomei. Defequei na casa-de-banho da rodoviária, pela madrugada, para evitar xingamentos e abusos (os meus amigos desvalidos avisaram-me na véspera), sendo que, por isso, um defecava na praça, atrás de uma árvore, atrás do posto policial.
Não me viram. Não me reconheceram. Pelo simples facto de que não olham para os desvalidos. Pela primeira vez em muito tempo, senti-me anónimo, mais um no mundo, perdido, sem referências. No meio de tanta miséria, percebi o calor humano de quem é desvalido, de quem oferece cachaça, confessa o sexo como fricção e reparte o pão. E dormi ainda na companhia de cachorros.
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