Antes de passar à análise da obra, deixo ao leitor uma passagem de “A Laranja Mecânica”:
“Qual vai ser o programa, hein?
Tinha eu, quer dizer, Alex e os meus três drugues, quer dizer, Pete, Georgie e o Tapado, o Tapado sendo realmente tapado, e nós estávamos sentados no Leite-bar Korova, rassudocando o que fazer da noite, num inverno agitado, preto e gelado, uma merda, se bem que seco. O Leite-bar Korova era um méssito de tomar leite-com, e vós, oh meus irmãos, já podem ter se esquecido como eram aqueles méssitos, com as coisas mudando tão escorre hoje em dia e todo mundo muito rápido para esquecer, os jornais também não muito lidos. Bom, o que vendiam lá era leite com alguma coisa.
Não tinham licença pra vender bebida, mas também ainda não tinha nenhuma lei contra prodar algumas das novas véssiches que eles costumam botar no môloco, de modo que a gente podia pitar ele com velocete, ou sintemesque, ou drencrom, ou uma ou duas outras véssiches que deixavam nuns bons e tranquilos quinze minutos horrorshow admirando Bog e Todos os Seus Bem-Aventurados Anjos e Santos no sapato esquerdo, e com luzes pipocando dentro do mósgue. Ou se podia pitar leite com facas, como a gente costumava dizer, e isso deixava a gente afiado e pronto pra uma sujeira de vinte contra um, e era isso que a gente estava pitando naquela noite com que eu estou começando a história.“
Inicia-se assim a incrível história do livro “A Laranja Mecânica” (Editora Artenova, 1972, 205 páginas). O livro, lançado em 1962 por Anthony Burgess, foi considerado pelo seu autor como um dos não preferidos, mas ganhou notoriedade para além da bela história em si, acrescida dos bastidores do seu vir ao mundo. Burgess havia recebido um parecer médico que tinha pouquíssimo tempo de vida e tudo com o que se preocupou foi escrever, escrever e escrever, na expectativa de deixar à esposa rendimentos apropriados, etc.

Não sei até que ponto isso possa ser uma jogada de marketing, afinal, todos sabemos que se contarmos uma história pessoal dramática pode ser que a nossa arte seja percebida. Este que vos escreve possui um cancro terminal e dentro de seis meses partirei. Assim sendo, adquiram os meus livros. Brincadeiras à parte, o certo é que o diagnóstico foi equivocado e o autor viveu mais quarenta anos e bem dos rendimentos de “A Laranja Mecânica” e dos seus outros títulos. O exemplar que tenho foi adquirido num sebo, trata-se de um livro de bolso e contêm o subtítulo “Uma história de violência e terror recriados no futuro”. Vamos mergulhar neste universo?
Somos apresentados a Alex – sabiam que em latim o significado do nome é “sem lei”? – e ao seu bando de adolescentes marginais que passam o dia todo a jogar conversa fora, a beber leite com droga sintética e adeptos da ultraviolência, saem à noite para colocar em prática os seus crimes. E aí vale de tudo: espancar um mendigo partindo-lhe os dentes, só por pura diversão; estuprar uma garotinha de 10 anos; roubar e para terem uma ideia do perfil malévolo, representam um pouco (ou muito) a personalidade do Joker, inimigo do Batman.
O diferencial do livro são os quase 200 verbetes criados pelo autor, com um glossário no final, sendo que já no início deste texto, na minha citação, já devem ter percebido o descompasso de algumas palavras. Há leitores que assumiram para si lerem a obra sem consultar o glossário, mas confesso que não foi o meu caso. A minha observação foi óbvia: claro que com o desenrolar da trama, passei a conhecer algumas gírias e a leitura foi fluida, sem maiores atropelos. O enredo é aparentemente simples.
Num destes assaltos, Alex é traído pelos seus colegas e capturado pela polícia. Trancafiado, recebe a visita do Ministro do Interior que lhe propõe um tratamento inovador que o Estado estava a experimentar e ele assina a papelada. Bem-vindos ao Método Ludovico. Consiste no seguinte: no paciente (Alex era a cobaia) é injetado um alucinógeno e ele é amarrado a uma cadeira para assistir a um filme específico. O filme são colagens de imagens de ultraviolência, guerras e tudo isso sem narrativa alguma, a não ser as músicas clássicas que acompanham essa visualização.

Alex, grogue, começa a incomodar-se com as cenas associadas a Beethoven, pois aquilo não fazia sentido pela não correspondência entre o sublime e o crime, e ele prontamente reconhece isso. Pois, por mais contraditório que fosse, Alex gostava de artes e era apaixonado por música clássica. Incomoda-se tanto que preferiria cerrar os olhos, mas isso não é possível: grampeadores de pálpebras fazem com que seus olhos obrigatoriamente vejam as cenas.
O método é angustiante e insano, trata-se do Estado fazendo uma lavagem cerebral ao pobre e infeliz indivíduo. Passado um tempo, o Estado comemora a eficácia do método e entrega à sociedade um Alex que mais se assemelha a um zombie. A sua vontade e livre-arbítrio foram cassadas e ele agora sente uma forte repulsa com aquilo que antes era seu deleite.
O livro tem muitas discussões subliminares e uma delas diz respeito à inferência que o Governo pode ter no cidadão. Para curar o crime, seria válido alijar o sujeito dos seus instintos? Na vida real, só para dar um exemplo, médicos e cientistas discutem seriamente a castração química para os pedófilos. E você, caro leitor, o que pensa sobre isso? Nos Estados Unidos na década de 1950, o todo poderoso do FBI J. Edgar Hoover chegou a prevenir as autoridades de que a delinquência juvenil estava a chegar a níveis alarmantes e que o problema se agravaria nos anos seguintes.
Não tenho como não terminar escrevendo sobre o filme “Laranja Mecânica“, do genial Stanley Kubrick, lançado em 1972 (em breve escreverei uma resenha sobre). A adaptação fez com que os personagens ficassem um pouco mais velhos e mesmo Malcolm McDowell (ator que interpreta o Alex) é um pouco velho com os seus 28 anos. O que salva é que o filme segue um guião meio que de teatro, mas enfim, analisarei mais adiante.
É um livro que incomoda pelas cenas de ultraviolência e, por falar no termo ultra, já dá para sentir o radicalismo em toda a sua essência. Guardo com muito carinho o meu exemplar já um tanto velhinho, o qual carinhosamente recorro vez ou outra para me lembrar de alguma gíria. Leiam.
“Cuidado com esse aí, senhor. Tem sido um sacana muito brutal e vai continuar a ser, apesar de ficar puxando o saco do capelão da prisão e lendo a Bíblia”
“A Laranja Mecânica”
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