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Porque A Arte Somos Nós

Procrastinar é a arte de deixar tudo para depois. Exemplo: desperto intentando escrever crónicas para o meu livro. Levanto-me, faço o café, refugio-me no tapete do meu aconchego, a biblioteca, com caneta Bic, folhas em branco e uma prancheta. Recosto-me na almofada e deixo a inspiração vir.

Aí é que começa o tormento. O título já estava na minha mente há três dias. Depois do sono, a certeza de que as ideias estavam concatenadas para o desenvolvimento do texto. Tento iniciar uma frase, uma mísera palavra, e nada! Rabisco, rabisco e nada. Vou ao aparelho de som e coloco o CD “As Quatro Estações”, dos Legião Urbana. Coloco o volume baixo, numa tentativa de introspeção. Mas ainda na canção Há Tempos percebo que estou mais concentrado na música do que nas minhas escritas, que ainda não passaram do título. Inferno!

Enervo-me. Acho que estou perdendo o dom. Daria somente para escrever um textinho chinfrim e cliché relatando o famoso “branco” pelo qual passam alguns escritores. Vários editores de cadernos de cultura em grandes jornais já proibiram este tema ao colunista: relatar o “branco”. Enfim, se não dá para se escrever sobre o “branco”, sobre nada é que não dá para escrever. Amasso a folha, deposito-a na lixeira e já irritado comigo mesmo, aumento o volume do CD e dirijo-me para realizar uma tarefa mais mecânica, cuidar da parte administrativa da empresa que comando.

Dirijo-me ao escritório, anexo à minha casa, ligo o notebook e visualizo o livro do caixa, a agenda e tudo o mais. Como hoje é sábado, preciso ao menos organizar a agenda de segunda e terça, abro a agenda e…

Antes de acessar ao sistema financeiro da empresa (e sei que tenho de estar bem concentrado), dou uma espiadinha no Facebook. Rolo uma barra da página, outra, mais outra, outra, abro um link do jornal Folha de S. Paulo que apresenta a obra “O Príncipe“, de Maquiavel. Leio. Compartilho na minha linha do tempo. Recebo um like. Um amigo chama-me para entabular conversa (“Como vai?”; “Tudo bem!”; etc. etc. etc.). Não vejo o tempo passar e sinto que estou procrastinando. Como trabalhar no financeiro não é tarefa para se deixar pelo caminho, sinto que já se passaram três horas de ter tomado o café e da minha total inapetência e apatia para ser produtivo naquele dia. Não dá! Desisto.

Nicolau Maquiavel

Chateado comigo mesmo, com as coisas que estou deixando de fazer, desligo o computador, desligo o CD dos Legião e tento começar a famosa faxina, na esperança de que a organização do ambiente possa refletir-se na organização das minhas ideias. Colocar a roupa de cama para lavar é fácil, afinal a máquina é automática e a roupa já sai quase seca. Mas a desgraça é quando se tenta arrumar a sala de TV. De forma automática, ligo a TV pensando que posso passar o pano de chão enquanto escuto a bendita.

Mas a TV aprisiona: um jogo qualquer do Campeonato Inglês, entre Leeds United X Newcastle, e a desgraça está feita. Esparramo-me no sofá do papai e fico ali, abobalhado. Já no intervalo da peleja futebolística, vislumbro a necessidade de fazer o meu almoço, afinal já são 11h30 e tenho que picar os legumes. Resumo da ópera: já procrastinei a metade do dia e nada fiz de produtivo, nem comecei a mísera faxina.

É quando dá aquele click. Se não dá para fazer uma obra-prima, tenho que ter a dignidade de fazer o banal, o corriqueiro. Desligo a TV, retiro a tomada e por pouco iria desconectar a antena externa. Sem som nem nada, passo a varrer, esfregar, passar pano de chão, passar lustra aos móveis e, num intervalo, pico os legumes e preparo a minha comida. Enquanto o arroz está quase a secar, é hora de aproveitar o tempo e estender as roupas; agora sim, posso almoçar em paz e depois de quase meia hora, incluída a sobremesa, sinto aquele cansaço gostoso e quando vou ver as horas, opa, já são as 15:00 horas.

Já que o dia estava perdido para a grande obra-prima, depois de uma sesta de uma hora, vou fazer as atividades empresariais da minha firma. Concentrado, solene, em pouco mais de uma hora já fiz o balanço da caixa semanal, organizei a minha agenda de segunda a quinta, separei os depósitos bancários, os carnés de pagamentos e duplicatas, etc. É quando me dá aquela sensação gostosa do dever cumprido. Agora sim, posso navegar pela Internet, assistir ao Boavista x Benfica ou simplesmente coçar o saco.

Mas prefiro um filme. A despeito de achar que minha TV se tinha estragado, e só depois de dez minutos entender que sem tomada ela não liga, coloco o DVD com “Vicky Cristina Barcelona” (já assisti quatro vezes) e eureca! Após o filme, sem intenção nenhuma para escrever, volto à prancheta e folhas, e passo a escrever este texto que vocês estão lendo agora, sobre procrastinação. Levo cerca de 20 minutos para passar estas ideias para o papel.

Interessante essa forma de manifestação de escrita. Por vezes, o escritor sofre por cinco dias seguidos para, de repente, “baixar o santo” e os rabiscos surgirem. Por isso irrito-me com aqueles espíritas que afirmam que tudo o que escrevo foi na verdade produzido por um espírito superior e que eu seria apenas o intermediário. Sinto muito em dececioná-los, caras pálidas! Sei do meu sofrimento e agonia para escrever os meus textos, das dores e tentações, nesta atividade em que tem que lutar diuturnamente contra todas as distrações do mundo real e virtual.

Resumindo: sigam meu conselho: procrastinem menos!

Marcelo Pereira Rodrigues

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2 thoughts on “Procrastinação

  1. Parabéns antes de mais pela reflexão. Entreteu-me bastante. Só que a conclusão deixou-me um pouco reticente. Está a apelar a que procrastinemos menos, mas de certo modo foi em virtude da sua procrastinação que surgiu este belo texto! Como diz António Lobo Antunes sobre a escrita: “Não há talentos, há bois, pessoas que marram até aquilo ficar bom.” Eu acredito que a predisposição nesta arte deve entrar na consideração. A produtividade face ao tempo neste ofício é bastante relativo. Tanto pode despachar um texto muito bom em 20 minutos um dia, enquanto que noutro leva 2 horas. Neste último caso a procrastinação pode ajudar a arejar as ideias.

    Queria apenas dar os meus 2 cêntimos sobre o assunto.
    Continuação de boas crónicas!

    1. marcelopereirarodrigues diz:

      Bernardo, obrigado pelo seu comentário. É, talvez você tenha razão. Obrigado pelo “belo texto”. Sim, o Dr. House na maioria das vezes resolve seus casos quando está “vadiando” em alguma outra situação. Bem pensado. O grande drama de escritores são alguns textos que parecem sair a fórceps. Valeu a excelência de sua companhia e demais amigos escritores do O Barrete! Boas coisas!

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