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Existe um bom número de videojogos que esbatem a linha divisória entre jogos e o cinema ou a televisão. Pense-se, por exemplo, no já retratado jogo “Heavy Rain“, uma narrativa interativa que se desenvolve como se fosse um filme à medida que o jogador vai tomando decisões que afetam o enredo. Uma questão que muitas vezes assombra os adeptos desta categoria de jogos é a de saber como os avaliar.

Deve, por um lado, ser mais valorizada a história, por muito linear que seja, ou, alternativamente, dar mais importância à influência que o jogador pode ter no decorrer da narrativa? Embora a maioria das repostas possa pender para a segunda opção, são poucos os jogos que realmente conseguem dar esse poder ao jogador.

A verdade é que estes jogos dão muitas vezes uma falsa opção de escolha. Frequentemente são apresentadas no ecrã mensagens como “esta personagem vai lembrar-se disso” ou “esta decisão terá consequências” quando na verdade nada do que seja dito ou feito irá alterar o rumo dos acontecimentos. Noutras situações, ainda que as ações possam potenciar diferentes histórias, a mesma arranja mecanismos de juntar narrativas divergentes, terminando sempre no mesmo ponto.

Mais grave ainda, em certas situações a escolha entre duas ações terá exatamente a mesma cutscene, algo que só é possível de reparar quando se experiencia o jogo uma segunda vez e, por isso, fácil de passar despercebido.

Na ótica das empresas desenvolvedoras de jogos, estas artimanhas (embora não lhes atribuam esse nome) são justificáveis. Com a tecnologia disponível atualmente, a criação dos cenários do jogo é algo que requer inúmeros animadores e programadores. Imagine-se que a uma certa altura a personagem tem que escolher para que cidade irá viajar, entre cinco opções. Ter que criar cinco cidades quando o jogador apenas irá experienciar uma é, na ótica da empresa, um desperdício monetário, embora seja algo que desvalorize completamente potenciais replays do jogo.

Outra desculpa usada é a de a equipa criativa querer contar uma história específica e de que o simples ato de escolha seja o objetivo, para o jogador perceber o que faria se estivesse na situação dos seus personagens. É algo que não é de todo desprovido de sentido, visto que quanto mais potencialmente divergente for a história, mais difícil será conseguir garantir que será sempre satisfatória, mas, em última instância, não deixa de soar a desculpa rasca.

Pode deduzir-se que a ditas “narrativas à medida” serão sempre, na sua essência, um trade-off entre uma história sólida (com personagens, ritmo e arcos bem definidos) e uma experiência mais livre, com todos os riscos acrescidos dessa liberdade. “Detroit: Become Human” dentro do género, é talvez o jogo que melhor consegue dosar a quantidade certa de cada um dos ingredientes. Desenvolvido pela empresa Quantic Dreams (a mesma criadora de “Heavy Rain”) e lançado pela Sony, “Detroit” foi lançado pela primeira vez em 2018, em exclusivo para a Playstation 4, tendo a versão para Windows saído no final de 2019.

A base narrativa de “Detroit” assenta num universo futurista, iniciando-se no ano de 2038, onde se retrata particularmente a cidade de Detroit no estado do Michigan. Foi precisamente em Detroit onde foram criados os primeiros seres inteligentes (denominados no jogo por androids), com capacidades superiores às dos humanos, mas submissos a estes. Praticamente todas as famílias e empregadores possuem androids para cozinhar, limpar ou para executar outras tarefas.

O resultado dessa realidade é uma taxa de desemprego altíssima entre a espécie humana e onde é notória uma grande diferença social entre as classes altas e baixas. A principal disrupção na história acontece quando alguns androids (chamados de divergentes) começam a desobedecer ao seu código e a, aparentemente, reger a sua ação com livre-arbítrio.

“Detroit” inclui um trio de protagonistas jogáveis, todos androids com diferentes origens. Primeiro é controlado Connor (Bryan Dechart), o mais avançado android já criado, que trabalha como investigador da polícia e tem como principal missão descobrir a origem dos divergentes. O segundo protagonista é Markus (Jesse Williams), cuidador de um famoso pintor, que terá de decidir como reagir à sua separação com o seu mestre. Por último, é introduzida Kara (Valorie Curry), uma android que é empregada doméstica num lar problemático.

Os três protagonistas: Connor (Bryan Dechart), Markus (Jesse Williams) e Kara (Valorie Curry)

Como habitual nos jogos da Quantic Dreams, o “Detroit” é jogado na terceira pessoa, controlando alternadamente um dos três protagonistas do jogo. É possível interagir com objetos nas redondezas (ao estilo dos jogos point and click), tomar decisões de diálogos e de ações. Auxiliada pelos famosos quick time events e pelas escolhas do jogador, a história tem o potencial para se diferenciar.

Em consequência, a morte de uma personagem não significa um game over, a história simplesmente progride sem a mesma. Interessantes adições em relação a “Heavy Rain” incluem a apresentação de um fluxograma no final de cada capítulo (com os vários ramos que a narrativa pode tomar), e tempo limite para agir em certas situações, algo que fomenta decisões mais espontâneas.

Embora o jogo valha sobretudo como um todo narrativo, é meritório de elogio o quão diferenciadas são as personagens, cada uma não só com uma personalidade muito própria, mas inclusive com diferentes habilidades. Enquanto que Connor é analítico e deduz certas informações, nas restantes é o jogador que terá que o fazer. Do mesmo modo, o atlético Markus tem a capacidade para computar previamente movimentos mais perigosos e Kara a frieza para pensar em todas as possibilidades para as suas ações. Para ajudar à diferenciação, cada personagem tem uma banda sonora própria e mesmo o trabalho de câmara distingue-se entre cada um.

Durante o jogo são frequentes situações que exigem uma escolha rápida

“Detroit” anula ao máximo as já referidas falsas escolhas e dá a cada decisão, por mais pequena que seja, consequências reais, por mais subtis que possam ser. A história pode evoluir de tantas formas diferentes que se torna difícil fazer uma sinopse mais desenvolvida. Mesmo repetindo a história duas ou três vezes, haverá sempre algo novo para descobrir.

No jogo, o momento em que os androids ganham o livre-arbítrio é representado pela destruição literal de uma barreira, a sua barreira para a liberdade. Não é só ao nível narrativo que essa metáfora funciona, uma vez que “Detroit” destrói convenções, eleva a fasquia e coloca uma nova meta para aquilo que uma narrativa interativa pode ser.

Luís Ferreira

Rating: 3.5 out of 4.

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