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Com o mundo em pleno estado pandémico e a indústria a precisar de um novo fôlego, “Tenet” tem sido apontado como uma espécie de Bíblia cinematográfica que irá unir de novo os espectadores na sua igreja, ou como quem diz, na sala de cinema. Nesta sucessão de comparações o cineasta Christopher Nolan assume o papel de Messias, negando a tendência digital que cada vez mais se tem tornado numa alternativa viável e insistindo que o blockbuster seja lançado nos maiores ecrãs disponíveis.

Em sua defesa, esta não é uma embirração propriamente nova. Desde que começou a gravar em formato IMAX em 2008, no filme “O Cavaleiro das Trevas“, Nolan tem defendido com unhas e dentes a experiência em sala e tem otimizado cada vez mais as suas películas para serem absorvidas nesse mesmo contexto. Ao ponto de ser quase ridículo ver “Dunquerque” (2017) num ecrã de computador, tal não é o decréscimo de aproveitamento ao nível sensorial e emocional.

Face a esta conjuntura, os meses que antecederam a estreia de “Tenet” geraram expetativas altíssimas. Não só porque a estreia de um filme do cineasta já adquiriu o estatuto de evento, como a ânsia de retomar aos cinemas em massa – com as devidas medidas preventivas – borbulhava cada vez mais. Resta a questão: Conseguiu “Tenet” aguentar a pressão?

Robert Pattinson e John David Washington

A narrativa acompanha a jornada da personagem interpretada por John David Washington, conhecida no filme como O Protagonista, um agente da CIA que depois de passar um teste de vida ou morte é recrutado por uma organização enigmática que se dá pelo nome Tenet. O palíndromo opera num mundo de espionagem internacional onde o conceito de tempo pode ser configurado de uma forma bastante particular. A missão é impedir que Andrei Sator (Kenneth Branagh), um magnata russo com habilidade de precognição, dê início à Terceira Guerra Mundial, ou pior. Para o impedir, O Protagonista tem de dominar o conceito de inversão temporal e usá-la em contra-relógio.

Soa complexo? A ideia é mesmo essa. Nolan continua a explorar a sua relação obsessiva com o tempo e desta feita utiliza um pano de fundo a la James Bond. Um filme de espionagem com fortes elementos de ação e ficção científica, e uma personagem central que tem agrado e compostura em igual medida. Quer pelo guarda-roupa, que é bastante diversificado e refinado, como pelos maneirismos da sua interpretação.

Os arquétipos do género continuam com o papel do ator Robert Pattinson, que na pele de Neil funciona como o companheiro misterioso que oportunamente auxilia O Protagonista. Para completar o painel, Kenneth Branagh interpreta o vilão medonho com um sotaque carregado e Elizabeth Debicki, na sua interpretação de Kat, representa a tentativa do filme ter algo que se assemelhe a um coração vivo.

Elizabeth Debicki e John David Washington

É o esquema clássico misturado com a ideia cerebral dos choques temporais que por vezes conectam o passado, o presente e o futuro num só espaço. Deliberadamente complexo e admirável de um ponto de vista de puro espetáculo, “Tenet” é um filme que requer múltiplas visualizações de modo a percebermos a totalidade do quebra-cabeças que impõe. Ainda no primeiro ato, uma frase dita ao Protagonista transcende claramente a quarta parede. “Don’t try to understand it. Feel it.” Isto é claramente Nolan a dizer para não pensarmos demasiado no assunto e simplesmente absorvermos a exposição e as sequências mais bombásticas à sua mercê. O problema é que: Não há nada para sentir.

Ao contrário de outros filmes da sua filmografia, como por exemplo “A Origem” (2010), a possível confusão da ideia de um sonho dentro de outro sonho é sustentada emocionalmente com a relação entre as personagens de Leonardo DiCaprio e Marion Cotillard. Assim como em “Interstellar” (2014), se não for possível captar na totalidade os conceitos espaciais introduzidos no último ato, há um primeiro ato inteiro que serve para estabelecer uma relação entre a personagem de Matthew McConaughey e a sua filha. E é por estarmos genuinamente interessados nestas bases dramáticas que os filmes motivam múltiplas visualizações.

Em “Tenet”, o conteúdo intelectual ultrapassa em milhas estelares o drama, a caracterização ou a emoção da história, oferecendo uma experiência frustrantemente fria e quase clínica. Esta distância que o filme impõe contrapõe o entusiasmo da ideia de voltar a passar de novo pelas duas horas e meia de uma narrativa cujos alicerces dramáticos são praticamente nulos. Mesmo Debicki, que tem o papel mais simpático e promotor de empatia, está preocupada com um filho com o qual nunca estabelece uma relação no ecrã, criando um fosso entre a sua aflição e o interesse pela aflição dela.

O realizador Christopher Nolan

Dito isto, em termos da coreografia da ação, o filme, tal como o seu conceito, é inventiva e está filmada com bastante eficácia. Um progresso que Nolan tem feito gradualmente ao nível do cinema de ação. Além do mais, o compositor Ludwig Göransson, no habitual lugar de Hanz Zimmer, corresponde com uma banda sonora resiliente quer nos momentos mais sossegados como nos mais agitados. É também fácil esquecer, por entre o furor mediático, que John David Washington carrega a história de ombros erguidos num papel exigente fisicamente, mostrando que é um talento em ascensão. Por outro lado, Pattinson volta a confirmar que tem uma presença magnética no grande ecrã.

Apesar do batimento cardíaco reduzido, é uma visualização que, tal como o cineasta apregoa, exige o maior ecrã possível. Nesse formato grandioso, torna-se fácil admirar “Tenet” pelo seu conceito elaborado e componentes técnicas pormenorizadas. Só que tal como um brilhante feito arquitetónico, deslumbra os sentidos sem estabelecer qualquer contacto afetivo. Quanto mais Nolan cresce em escala menos eficiente é em storytelling.

Bernardo Freire

Rating: 2 out of 4.

IMDB

Rotten Tomatoes

2 thoughts on ““Tenet”: O total desequilíbrio entre a Razão e a Emoção

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