OBarrete

Porque A Arte Somos Nós

“Era 1992. Eu tinha dezassete anos e uma curiosidade recente por conhecer o mundo, por saber afinal o que havia na cidade para além de Santa Anita. A Lima que se abriu diante de mim foi uma cidade favelizada a ponto de cair sob o assédio dos grupos subversivos de extrema esquerda; um imenso e desordenado conjunto urbano que quase por casualidade era a capital de um país praticamente ingovernável”

Um caso engraçado ocorreu para que adquirisse este livro. Já havia feito as minhas compras na Leitura do Shopping Cidade (três livros) e convidei a namorada para tomarmos um café. Ela me comunicou a necessidade de ir ao banheiro para o “2” (espero que me entendam!). Como cavalheiro, sempre acompanho as damas nas portas dos banheiros, mas, nesse caso específico, sugeri que ela fosse tranquila e que ficaria mais um tempo na Leitura, olhando alguns outros títulos. E foi assim que na seção de autores internacionais vi um maçudo da editora Alfaguara (531 páginas). Um escritor com nome latino-americano e quando fui ler a orelha e contracapa, um peruano: Jeremías Gamboa. “Contar Tudo” é o nome do livro.

Ainda envolto na minha viagem a Lima, no Peru, o adquiri por antever que encontraria ali cenários os quais havia visitado, e mais uma possível autobiografia de um escritor quase da minha idade (nasceu em 1975), que trabalhou no jornalismo e hoje se dedica exclusivamente à escrita de livros. E foi uma febre ter este livro em mãos. Na média de 100 páginas por dia, terminei o mesmo em seis dias seguidos e a dizer que foi um livro maravilhoso e que dialogou muito comigo, notadamente no processo da escrita. Agradeci à minha namorada a ida ao banheiro, mesmo que ela tivesse retornado logo e me dito que não havia conseguido fazer o “2”.

Escatologias à parte, vamos ao livro. Num fluxo de linguagem impressionante, Jeremías narra a vida de Gabriel Lisboa, um pobre rapaz da periferia de Lima que entra para uma universidade pública e consegue um primeiro estágio não remunerado para escrever para uma revista no verão. Dedicado, Gabriel vai se sobressaindo pelo talento e deve tudo ao apoio de seu tio, que é garçom numa pizzaria de Miraflores (bairro chique de Lima) e que consegue essa primeira entrevista de emprego.

Gabriel consegue bolsas universitárias semestrais devido às boas notas e aos poucos vai galgando os degraus do jornalismo peruano. Talentoso e dedicado, pertence a um Conciliábulo que é frequentado por três fiéis amigos (Santiago Montero, Jorge Ramírez Zavala e Bruno “Spanton”). Tímido nos relacionamentos amorosos, aos poucos vai ganhando confiança e se aventurando pela vida, crescendo profissional e pessoalmente.

Capa do livro “Contar Tudo”

Mas a questão central do romance autobiográfico é a frustração de se viver da literatura numa cidade tão limitada quanto Lima. Também a ideia de como fazer jornalismo (com os seus fechamentos diários e textos amplos) vai matando o seu lado escritor. Cito: “Mas claramente não me acostumei como pensava, porque, quando as férias acabaram e retornei à Semana, não tinha escrito uma só linha de nada, e, quase de imediato, a redação e o ritmo dos fechamentos se tornaram difíceis de suportar.

Eu escrevia bastante por estes dias, mas tudo se diluía nos textos de outros, de modo que tomei consciência de que na verdade não escrevia nada e comecei a me sentir francamente mal. Não pretendia me iludir sobre o que desejava fazer com minha vida, mas não tinha nenhuma ideia de como torcer as coisas e colocá-las a meu favor. De uma hora para outra, me sentia a vítima de algo que eu mesmo, com esforço, havia construído durante anos de sacrifício e de trabalho. Desde que decidi me tornar jornalista, eu tinha começado a erguer, sem querer, os paredões do meu próprio cárcere“.

A ideia romântica da necessidade do isolamento para se escrever é aventada e transforma-se num verdadeiro martírio para Lisboa, que dá um tempo ao jornalismo e refugia-se, estando apenas ele e a famosa tela do computador em branco. Os seus envolvimentos amorosos atrapalham-no e o intento de escrever um romance vai ficando mais distante, a cada tentativa frustrada. Particularmente, justifiquei-me diante das minhas costumeiras fugas do mundo real para elaborar as minhas personagens nos livros que escrevo. As dificuldades e distrações são muitas, e o ofício de se fazer um romance requer disciplina, concentração e fuga.

Em “Contar Tudo”, o que mais me encantou foi ter reconhecido cenários de Lima como Barranco, Miraflores e San Isidro; saber dos bastidores da imprensa tradicional e rir das trapalhadas, maluquices e declamações poéticas do Conciliábulo, além dos casos amorosos, a maioria fadada ao fracasso desde o início e um ensinamento de que uma boa verborragia e fluxo narrativo intenso podem significar que enfim a voz do escritor se fez ouvir. O livro é esse testemunho, o reconhecimento de que às vezes basta retratarmos os factos como uma espécie de “a vida como ela é”.

Li-o na média de 100 páginas diárias, num intervalo de seis dias, e a dizer que me reconheci na obra como escritor e na tentativa (nem sempre com êxito) de passar para o papel aquilo que trago entalado na garganta. Um livro sensacional!

Marcelo Pereira Rodrigues

Rating: 3.5 out of 4.
Marcelo Pereira Rodrigues no bairro Miraflores, tendo como fundo o Oceano Pacífico

Leave a Reply

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

%d bloggers like this: