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Em 1970, José Afonso viajou até Paris, onde José Mário Branco vivia exilado, e escreveu canções com influências africanas, cujos arranjos e direção musical de José Mário são tão originais quanto apropriados. Também digno de nota é o facto de cada música ter um arranjo único. Até então, José Afonso gravou álbuns com uma instrumentação rudimentar, muito em volta da viola.

Em 1971, no Strawberry Studios em Herouville, França, outras possibilidades foram oferecidas. Além disso, havia excelentes instrumentistas, como o percussionista Michel Delaporte, o baixista Christian Padovan ou o flautista Jacques Granier. Com o viola tradicional, José Mário associou o trompete, a flauta, o acordeão, o piano e várias formas de percussão, que revelam definitivamente a grandeza do poeta-cantor. Há uma grande variedade de instrumentos, como darbuka, bongo, tumba, pandeiro brasileiro, adufe, e guimbarda; soluções inovadoras, ainda hoje.

José Afonso

Este disco é um daqueles que consegue combinar a tradição e o moderno de maneira exemplar. A percussão de Delaporte faz as honras na abertura de Senhor Arcanjo, com as suas congas a marcarem o tempo enquanto a viola entra, tornando-se evidente a influência dos ritmos africanos. Depois temos uma canção para viola e acordeão baseada num refrão popular, Cantigas do Maio, destacando o incontornável e maravilhoso trabalho de vozes de Zeca, com o acordeão de José Mário capaz de provocar arrepios.

Da percussão do adufe em Milho Verde até à homenagem a Catarina Eufémia, camponesa morta pela PIDE nos anos 50, e em Cantar Alentejano, Zeca Afonso mostra a sua diversidade passando de uma canção tradicional para uma balada inspirada na viola de Boris.

Não esquecendo o maravilhoso Maio Maduro Maio, talvez a melhor faixa do álbum, com o baixo elétrico de Padovan, rodeando o trabalho subliminar da guitarra e a delicada flauta de Granier, enquanto percussões ocasionais, notas de trompete e corais se comportam como antídotos para os vocais de Zeca.Em destaque temos ainda o pulso ternário do berimbau e as bruxas hipnóticas que dançam na Ronda das Mafaricas com letra de António Quadros; o Fender Rhodes embelezado no poema de Mulher da Erva; e o impressionante final de Coro da Primavera, baseado no baixo, flauta e percussão, com a intensidade a aumentar os temas de viola que abrem as portas para um grandioso refrão, este alimentado pelo órgão.

Mais que uma canção política, Grândola, Vila Morena é uma canção simbólica, que narra a fraternidade do povo de Grândola. Para esta música, José Mário Branco fez algo único, se bem que perfeitamente adequado: som de passos, como símbolo de muita gente a caminhar. Não deixando de fora o inesquecível e poderoso coro com as vozes de Zeca Afonso, José Mário e Francisco Fanhais.

A música de José Afonso teve um papel preponderante na “Revolução dos Cravos”

É impossível ignorar o papel vital das letras de José Afonso, as suas palavras, embora não sejam explicitamente políticas, são vibrantes de consciência social, sarcásticas e cheias de metáforas; mesmo assim, o apelo mágico do álbum reside no ecletismo das estruturas das suas músicas, que, embora carregadas de temas folclóricos, são arranjadas de bom gosto, inspiradoras, progressivas e realmente nunca antes ouvidas. Principalmente graças aos arranjos moderados, mas extremamente eficazes, que aprimoram as melodias poderosas, os ritmos irresistíveis e a maneira doce e desafiadora como Zeca canta as músicas imaginadas principalmente por ele; com exceção de Milho Verde.

Em suma, “Cantigas do Maio” é, como disse Viriato Teles, “o mais histórico e o mais referencial de todos os discos da música popular portuguesa. (…) Este disco assinala a primeira viragem de fundo na revolução musical iniciada por Zeca uma dúzia de anos antes“; sendo que apontou como um marco e ponto alto na carreira do artista, músico, cantor e poeta. Um álbum inovador a vários níveis na carreira do seu autor, em grande parte devido à encenação musical inovadora do produtor José Mário Branco.

Além disso, a sua importância histórico-cultural também faz deste trabalho um pedaço da História de Portugal: quando Grândola, Vila Morena é tocada na Rádio Renascença, na manhã de 25 de abril de 1974, como o segundo sinal nacional para alertar os revolucionários que as manobras poderiam prosseguir com segurança, o que levou à queda do regime fascista.

João Filipe

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