Às vezes, tudo o que basta é o primeiro plano: a câmara encontra-se estacionada numa viatura, com a lente na direção de uma casa campestre. O formato da tela parece encaixotado, até que o movimento dianteiro quebra as paredes artificiais e revela a chegada da polícia, que se encontra diante um massacre invisível à audiência. Este apontamento formal foi o suficiente para encarar com grandes expetativas “X”, o filme de horror escrito e realizado por Ti West. Um breve pormenor numa sequência inicial que tanto antecipa o sangue e as tripas, como também revela que vai haver cérebro à mistura.
Slasher de corpo e alma, a narrativa tem lugar em 1979, na zona rural texana, e começa por apresentar seis norte-americanos que arrendam uma propriedade durante o fim-de-semana para rodar um filme pornográfico. A composição da produção tem à cabeça Wayne (Martin Henderson), no papel de produtor confiante, Maxine (Mia Goth) e Brittany Snow (Bobby-Lynne) enquanto estrela em ascensão e protagonista dotada, respetivamente, bem como Jackson (Kid Cudi), um ex-combatente do Vietname que oferece toda a exuberância peniana. Por fim, o casal RJ (Owen Campbell) e Lorraine (Jenny Ortega) tratam dos aspetos técnicos, no papel de realizador e assistente de som, nesta ordem.
A quinta para onde se deslocam é propriedade de Howard (Stephen Ure) e Pearl (Mia Goth, aqui completamente transformada, num duplo papel irreverente), um casal de idosos que se revela sinistro e pouco acolhedor. O género de vilões que, apesar de tudo, são mais discretos do que Leatherface e companhia, em “Massacre no Texas” (1974), o filme de Tobe Hooper que serve de pilar inspiracional para Ti West. Embora estejam retratados de forma mais pronunciada do que as personagens mais velhas na longa-metragem “A Visita” (2015), onde pouco é o que realmente parece.

Já em “X”, não há que enganar. Num estilo de cinema pastiche, os mecanismos de avanço do enredo são aqueles que encontramos no framework de inúmeros slashers norte-americanos dos anos 70. Desde a deslocação para um local remoto até ao grupo que, inadvertidamente, se encontra em circunstâncias de vida ou de morte. Contudo, aquilo que o distingue de ser um mero exercício nostálgico – característica comum no seu cinema, basta vermos a estética que aplica no inquietante “The House of the Devil” (2009) – é a atenção ao detalhe técnico e ao desenvolvimento dos temas globais da obra.
Para começar, a sua qualidade meta é deveras estimulante e engraçada. A título de exemplo, a certo ponto, RJ refere que tenciona fazer experiências com a montagem na produção que estão a rodar. Pois bem, o filme também apresenta escolhas estilísticas que vão desde a divisão da tela até secções de montagem pulsante. Isto, aliado a sequências de planos que captam um verdadeiro estado de ansiedade, manteve-me numa condição de constante envolvimento com os eventos e com as personagens.
Já do ponto de vista da sua matéria, há, de igual modo, prazeres a apurar. A líbido na terceira idade tem sido um tabu de difícil desconstrução fílmica e social. Em “X”, as motivações assassinas estão intimamente relacionadas com a quimera de desejo e beleza numa idade em que os corpos descaem e o brilho começa a desvanecer. Em contraposição à jovialidade e vitalidade dos recém-chegados, o estado de decadência corporal (e, convenhamos, também mental) dos senhorios, dá lugar a frustrações mortais.

Além do mais, o facto de Mia Goth interpretar, em simultâneo, uma rapariga que terá muitos anos para desfrutar dos seus apetites sexuais e uma senhora na sua idade invernal, incapaz de atrair, é o pontuar (demasiado) óbvio da metáfora de que elas são duas faces da mesma moeda – a advertência dos perigos da dependência da beleza para o bem-estar pessoal.
Por extensão, a hipocrisia dos bons costumes cristãos, que são os primeiros a condenar comportamentos lascivos ao mesmo tempo que no seu íntimo não são menos impetuosos do que os demais, está bem patente no desenrolar da história. Não apenas no comportamento dos idosos, mas também em Lorraine que, inicialmente, de cruz ao peito, mostra-se repudiada pelo projeto pornográfico, apenas para mais tarde se deixar seduzir pelo seu fascínio carnal, algo que provoca um grande desconsolo no seu namorado (que tem culpa no cartório, pois afinal é tudo feito em nome da arte, ou não é?).
Para todos os efeitos, o certo é que Ti West não precisa de romper com o ADN do subgénero para realizar um dos slashers mais substanciais da memória recente – e o seu melhor filme. Mesmo que lhe falte aquele atrevimento mais disruptivo, oferece todo o entretenimento sensual e violento a que se propõe e ainda tem a audácia de acrescentar a tão diferenciadora componente humana. Talvez seja este o caminho que os slashers tenham de trilhar para se conseguirem reinventar: pronunciar mais a melancolia e as necessidades dos seus vilões, relacionando-as com as vítimas. Assim vale a pena ser saudosista.
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