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Porque A Arte Somos Nós

I

Mr. Mike Flanagan

Seja a escrever para o grande ecrã ou para o pequeno ecrã, o realizador e argumentista estadunidense Mike Flanagan, responsável por este “The Haunting of Bly Manor”, tem-se mostrado versado em espetros e almas penadas. Seja em mistérios menos vistosos como “Absentia” (2011), ou em produções aprimoradas ao estilo de “Jogo Perigoso” (2017), o criativo formou um corpo de trabalho que está para os fantasmas como o de George A. Romero está para os zombies. É certo que está longe de ser pioneiro na utilização destas figuras abstratas no cinema. Antes dele, Lewis AllenRobert Wise já perturbavam as mentes das audiências com filmes como “A Casa Assombrada” (1944) e “The Haunting” (1963), respetivamente.

Contudo, a sua perícia em diversificar o simbolismo das aparições diferenciou as suas histórias de forma quase singular. Nos seus dramas, um fantasma pode refletir um receio de uma personagem, um trauma mal curado, uma presença genuinamente maligna ou até um desgosto amoroso. Desta forma, cada vez que Flanagan produz conteúdo, é como se oferecesse ao mundo uma caixa misteriosa pintada com espíritos: sabemos o que nos espera, resta saber o que significa.

II

Hill House vs Bly Manor

As duas febres recentes encontraram o calor de uma casa pouco assombrada chamada Netflix, longe dos estúdios de Hollywood, nos quais tem tido sucesso nos últimos anos. Em 2018, chegou com o arrepiante “The Haunting of Hill House“, a história de uma família fragmentada que confronta uma série de memórias e eventos aterrorizadores que a levou a escapar da casa amaldiçoada. Diz-se que o terror começa nas personagens. Sem querermos saber das personagens, o pavor é nulo, ou, no máximo, vão.

“Hill House” é exemplar no que diz respeito à execução de mecanismos de aproximação com as personagens. Para já, são multidimensionais e estão encarnadas por atores que facilitam o relacionamento. Têm defeitos, têm qualidades e questionam a vida e a morte com fortes sequelas de trauma associados. O crescendo até ao sexto episódio foi absolutamente magnífico, sendo este último inesquecível. Daí em diante o excesso de sentimentalismo que foi impresso nos episódios finais levou a série para rumos menos empolgantes, mas não menos dignos de nota.

Victoria Pedretti (Dani Clayton)

Dois anos depois, chega uma nova entrada na antologia “The Haunting – The Haunting of Bly Manor“. Nesta série associada, a narrativa é levemente adaptada do conto de Henry James, “The Turn of the Screw“, e começa depois da morte trágica da au pair da família. Para a substituir, Henry contrata uma jovem americana para cuidar dos seus sobrinhos órfãos na Mansão Bly, com a ajuda do chefe de cozinha Owen, a jardineira Jamie e a governanta Mrs. Grose.

Enquanto “Hill House” triunfa pelas personagens e pelo terror petrificante, “Bly Manor” continua a ter a mesma atenção para com a escrita das relações mas aposta mais no ângulo do romance gótico. É, na sua essência, um drama romântico com fortes influências sobrenaturais e imagens horríficas. Não assusta tanto nem com tanta frequência como o seu antecessor, mas também não o almeja. Por sua vez, procura transformar através do desenrolar de desgostos empáticos e memórias corrompidas.

III

Assombroso ≠ Assustador

A função básica, original, do terror enquanto género cinematográfico é, previsivelmente, assustar. No entanto, o que não é assim tão óbvio ou evidente é a multiplicidade de formas pelas quais podemos ser assustados. O susto pode advir de um risco mal calculado, da constatação de uma consequência inevitável, entre muitas outras formas. Em “Bly Manor”, Flanagan propõe que os sustos surjam sim, por meio de conceitos paranormais como pessoas sem faces ou espetros persistentes em reflexos, mas no seu núcleo está o assombro melancólico de um romance agridoce, uma conexão afetiva não concretizada, uma relação abusiva ou a tragédia de vermos quem mais gostamos a enfrentar o seu destino final.

Estas questões espelham os nossos medos, os nossos receios. Sentimos as dores das personagens como nossas. Face a esta realização, o conceito de terror expande exponencialmente. Consciencializamo-nos que ficar assombrado trata-se de muito mais do que a simples aplicação de uma técnica com o propósito de assustar. São conceitos separáveis. Tendo isto em conta, a série assombra muito mais do que assusta, mas além disso emociona e inspira-nos a sermos pessoas melhores.

Benjamin Evan Ainsworth (Miles)

IV

A Icónica Influência de “The Innocents” (1961)

Corria o ano de 1961 quando estreou no grande ecrã o filme de terror “Os Inocentes“, realizado por Jack Clayton, também adaptado do conto “The Turn of the Screw”. A série bebe desta adaptação cinematográfica principalmente em termos estéticos e formais. Claro, o fator “algo não está certo com as crianças” é tematicamente relevante em ambos, mas a presença arrepiante além vidro e uma senhora vestida de negro ao fundo de um lago permanecem visualmente desconcertantes, mesmo depois de reciclados.

Também a canção inquietante O Willow Waly volta a encaixar na perfeição nesta história de amor e solidão – “We lay my love and I beneath the weeping willow; But now alone I lie and weep beside the tree“. No meio de uma banda sonora que chora melancolia, também a direção de fotografia compõe através de ângulos variados imagens atmosféricas. Componente chave no sucesso do clássico “The Innocents”.

V

O Horror de Amar

Parte da nossa condição humana é, surpresa, morrer. O relógio interno, caro leitor, não para, mas o mesmo se passa com o das pessoas que lhe são indiferentes, que detesta e que ama. Neste trilho de sentimentos, Flanagan explora, em última instância, a maldição como se de uma terrível doença se tratasse. Uma doença que separa os amantes e infesta a mente com a pergunta: Valerá a pena o vínculo? Anos, décadas de dedicação a um outro, para no fim sobrar um desconsolo.

“Bly Manor” argumenta que, apesar de tudo, o horror de amar vale o esforço. Pois na certeza orgânica de que somos efémeros, reside a beleza da experiência humana. Importamo-nos porque o tempo tem um preço e alocar uma parcela substancial desse tempo no amor é fazer um bom investimento. Nem sempre é fácil, nem sempre é certo. Mas dentro das poucas certezas que temos na vida, amar é uma incerteza que porventura nos traz tanta felicidade como tristeza.

Bernardo Freire

IMDB

Rotten Tomatoes

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