Em “American Factory”, nunca como agora fez sentido analisar este documentário editado em 2019 e vencedor de um Óscar da Academia – Melhor Documentário. Tomando como verdadeiros os números divulgados pela China relativos à epidemia de que foram alvo numa fase inicial do que se iria tornar numa pandemia à escala global, e, lembrando os métodos utilizados para o conseguir, podemos estabelecer um paralelo entre o que aconteceu lá e o que está a acontecer nos Estados Unidos da América com um quarto da população! Decididamente é uma questão de mentalidade… e não só.
Este documentário foi produzido ao longo de mais de dois anos de filmagens dirigidas por Steven Bognar e Julia Reichert, e teve como objectivo acompanhar a instalação de uma fábrica da empresa de um milionário chinês, a Fuyao Glass Industry Group Co., Ltd, em solo americano. Tal só foi possível após um acordo entre os produtores, Jeff Reichert e Julie Parker Benello, e o próprio Fuyao, para acompanhar o desenvolvimento do projecto fazendo imagens tanto nos Estados Unidos como na China.
Tudo começa com o acordo que Fuyao consegue fazer com as autoridades americanas para a compra de uma unidade de produção que pertenceu à General Motors, que foi encerrada em Dezembro de 2008, a Moraine Assembly, situada na cidade de Moraine no estado de Ohio, e perto da cidade de Dayton. O objectivo de Fuyao era estar mais perto do mercado automóvel americano, uma vez que a sua produção é de pára-brisas para automóveis e, estando mais perto do mercado, os custos de produção e entrega seriam, supostamente, mais baixos.
Fuyao traça um plano ambicioso, instalando uma linha de montagem em tudo semelhante à que já operava na China e trazendo mão de obra chinesa para dirigir os sectores mais sensíveis da produção, a restante mão de obra seria adquirida na área, tal como obrigavam as autoridades americanas. E é aqui que tudo se começa a complicar ainda numa fase de instalação da fábrica.

O confronto de ideias entre o conceito chinês de rentabilidade de processos e o conceito americano de embelezar sempre tudo e mais alguma coisa sem pressas é latente ao longo de todo o documentário. É perceptível na oposição de imagens feitas na China e nos Estados Unidos, que para fazer precisamente a mesma coisa, a predisposição dos funcionários é completamente diferente.
A título de exemplo, a Fuyao tem à disposição dos trabalhadores na China um bairro habitacional junto à fábrica com as infraestruturas necessárias às famílias que lá trabalham, a fim de rentabilizar a sua produtividade, ao passo que nos Estados Unidos acompanhamos trabalhadores com problemas financeiros resultantes de processos de desemprego, o que os leva a ter imensas dificuldades em pagar a casa ao banco ou os alugueres das mesmas.
As tensões aumentam quando os trabalhadores americanos exigem a sindicalização, levando Fuyao a ameaçar que se o sindicato entrar, ele fecha a fábrica. Daqui resultam despedimentos e a não aprovação, por parte dos próprios trabalhadores, da sindicalização.

Este documentário apresenta-nos duas mentalidades completamente diferentes. Por um lado a mentalidade chinesa em que o trabalhador se torna pertença do patrão, oferecendo a este tudo o que tem de si de forma abnegada e procurando a perfeição e a rapidez na execução da sua tarefa. Por outro, a mentalidade americana do estrito cumprimento do horário, dos direitos, de processos adaptativos lentos e sem qualquer brio na execução da tarefa. Ao longo de várias situações, que as câmaras acompanham, este antagonismo é claro e perceptível.
Para além do mais, o sistema de gravação que os produtores adotaram, fazendo a captação do som e imagem em vivo com as vozes dos intervenientes e das suas envolventes (fly-on-the-wall), permite ter a percepção real dos diálogos e da troca de ideias dos indivíduos sem “maquilhagem”.
É, sem dúvida, um excelente trabalho que nos permite questionar os sistemas e os resultados que obtêm. Todos estamos de acordo relativamente ao não respeito dos direitos humanos na China e a forma como os trabalhadores são tratados, sendo o foco estabelecido na produção e na força comum do todo. Por oposição, os Estados Unidos funcionam com base num sistema liberal que acaba por proteger pouco os trabalhadores e, por seu lado, também estes questionam os valores que lhe são impostos sentindo necessidade do apoio dos sindicatos, que, nos Estados Unidos, têm a força e influência que todos sabemos.
Quem está na linha certa? Os meios justificam os fins? O certo é que a China ameaça tornar-se na maior economia do mundo graças a muitos Fuyao’s e a economia americana ameaça cair numa das maiores recessões da sua história com um aumento nunca visto do desemprego. Não sou político nem pretendo ter um discurso político. Cada um que analise e retire as suas conclusões, e este documentário é uma excelente ferramenta para o fazer. Aconselho vivamente.
Jorge Gameiro