Este texto é transcrito do livro “Biografia Do Filme” (Plátano Editora), do autor Mark Cousins, que para além de escritor, é crítico de cinema, produtor e realizador. Este é colaborador regular de publicações como “Sight And Sound, “Prospect” e “The Times”. Com este texto pretendo dar a conhecer uma visão mais profunda e analítica de um tema cinematográfico mais específico. Este serve de apelo e motivação para a visualização dos filmes abordados, sempre em prol do cinema.
“A coincidência desconcertante, durante os anos 30, da brutalidade japonesa no estrangeiro e a criatividade nacional torna-se ainda mais exasperante quando vista sob a perspectiva chinesa da mesma época. Tinha havido muito pouca produção cinematográfica na China antes da queda do último imperador Manchu em 1911; o filme mais antigo a que se pode ter acesso é provavelmente “As Labutas do Amor“, feito por Zhang Schi-chuan em 1922. Pelo menos 400 filmes foram realizados entre 1928 e 1931, a maior parte versões filmadas das óperas mais famosas de Pequim, que viriam a ter influência mais tarde, e contos populares. O primeiro filme chinês a fazer história aconteceu em 1931, ano da invasão da Manchúria pelos Japoneses e nos seis anos seguintes seriam produzidos mais de 500 filmes. Eram, na sua maior parte mudos, tal como os filmes japoneses da mesma época e no estilo romântico-realista. Os melhores eram feitos por realizadores que se opunham não só à invasão mas também aos recém-vindos nacionalistas chineses chefiados por Xiang Kai Chek. Os seus filmes prenunciam os neo-realistas italianos que surgirão mais de uma década depois.
“A Rapariga e o Pessegueiro” (1931) é disto um exemplo. Foi realizado por Bu Wancang em Xangai, uma das cidades mais cosmopolitas do mundo. É uma história paralela, a de uma rapariga e a de um pessegueiro, cada uma sendo a metáfora da outra. O filme é hoje lembrado sobretudo pela surpreendente protagonista, Ruan Lingyu, a quem chamaram a Greta Garbo chinesa e cuja vida dramática eclipsou a da sua congénere sueca. Ruan foi uma das primeiras estrelas do cinema chinês e em filmes tais como “A Rapariga e o Pessegueiro” e “Pequenos Brinquedos” (China, 1933), interpretava figuras cujas histórias focavam o papel das mulheres na sociedade e, de modo geral, na vida moderna na China. Naruse e Mizoguchi focavam quase exclusivamente as mulheres japonesas da mesma época, o realizador alemão Douglas Sirk faria o mesmo nos seus filmes americanos dos anos 50 e nos anos 60 os realizadores franceses mostrariam como a vida estava a mudar através de actrizes que eram musas como Jeanne Moreau e Anna Karina.
Ruan Lingyu serviu a função de musa para os realizadores chineses. Em “Novas Mulheres” (1935) interpretava o papel de uma actriz e argumentista que se suicidava após ser assediada pela imprensa. Os jornais de escândalo de Xangai desse tempo atacaram o filme e a esquerdista Ruan por se sentirem atacados pelo filme. A reacção de Ruan foi trágica – tomou uma dose excessiva de comprimidos e morreu. O cortejo fúnebre tinha quase cinco quilómetros de comprimento, durante o qual se suicidaram três mulheres nove anos depois; demonstrações semelhantes tiveram lugar durante o funeral de Rudolfo Valentino, em Hollywood. Na sua primeira página, o New York Times descrevia-o como “o funeral mais espectacular do século”.
Em 1937, o Japão invadiu a China continental. Nesse mesmo ano Yuan Muzhi, o realizador mais importante da época, realizou “Anjo da Rua“, muitas vezes votado como um dos melhores filmes chineses jamais realizados. A legenda inicial situa a cena: “Outono de 1935. No mundo da ralé de Xangai”. Um jovem trompetista apaixona-se por uma cançonetista de um bar da Manchúria e segue-se uma história acerca do sofrimento das classes mais desfavorecidas de Xangai durante a ocupação japonesa. Yuan pretendeu que “Anjo da Rua” fosse uma crítica do governo nacionalista, que foi posto em causa pelo sucesso do filme. Fugiu para escapar à invasão japonesa e trabalhou para o líder comunista Mao Tsé Tung em 1937 em Yen’na, onde os comunistas se tinham reagrupado após a “Longa Marcha”, para fugir aos nacionalistas. Xangai permaneceu como o centro da indústria cinematográfica, aprovada pelo governo mas, por volta de 1938-39, uma pequena ilha ao largo da costa sul do continente, chamada Hong Kong, tornou-se o foco para a inovação fílmica cantonesa.”
