Gina Prince-Bythewood é a realizadora daquele que considero ser um filme de uma qualidade e completude que já não se viam há muito tempo. “The Woman King” (“A Mulher Rei“, em português) faz-nos viajar até aos anos 1800 em África, onde o Reino de Dahomey procura proteger-se de inimigos estrangeiros e de inimigos vizinhos. Para tal, existe um grupo de mulheres guerreiras guiadas por Nanisca (Viola Davis), altamente treinadas na arte da defesa.
Os maiores inimigos são os negreiros, traficantes de escravos, que procuram a dita “mercadoria” nestas tribos. Irónica e tragicamente algumas dessas mesmas tribos também fornecem escravos aos estrangeiros, alimentando um mercado doentio e mantendo este ciclo mórbido a funcionar. Lado a lado com a questão dos conflitos, vivemos a história das Agojie, as guerreiras de Dahomey, mulheres que não podiam casar nem ter filhos, pois o seu dever era única e exclusivamente o de lutar e defender o reino.
Todas elas são excecionalmente bem representadas por nomes como Viola Davis, Lashana Lynch, Thuso Mbedu ou Sheila Atim. Podia enumerar aqui toda e qualquer mulher que participou ou contribuiu para esta obra-prima, pois a mulher é realmente o grande foco, a luz e a vida do filme. Nunca a figura feminina foi tão bem representada no grande ecrã. A mulher, mais precisamente a mulher negra, é a magia, a chama, o poder da obra.

A cada segundo, as mulheres poderosas gritam a sua força e a sua resistência perante os inimigos, os inimigos das tribos vizinhas, os inimigos negreiros e os inimigos homens que as desrespeitaram, violaram, agrediram e venderam. A mulher é aqui uma força da natureza, uma intensa guerreira que luta contra a sua dita natureza “fraca”. Não há fraco no feminino, há sim uma luta contra a fraqueza humana, uma necessidade constante de provar o seu valor. E mesmo quando provado e mais que provado, esse mesmo valor é questionado e posto à prova.
Viola Davis provou já ao longo da sua carreira a sua qualidade enquanto atriz, tendo demonstrado as suas capacidades nos mais variados papéis, no entanto, em “The Woman King”, vemo-la nua e crua a honrar uma cultura tão magoada pelo passado. A dor provocada pela crueldade dos homens foi transformada numa intensa guerreira, com um coração tão forte e tão difícil de alcançar. A atriz despe a sua alma neste filme, pois apresenta-se-nos na sua essência mais natural, bela e mais mágica. É impossível ficar indiferente às suas lágrimas, aos seus movimentos e simplesmente à sua presença.
Contudo, eu diria que a grande surpresa de “The Woman King” é, na verdade, Thuso Mbedu (no papel de Nawi). Esta mulher de 19 anos é oferecida ao rei e às Agojie pelo seu pai, já que ela se recusava a casar com um homem que não amasse e ao qual teria de obedecer. A evolução, o amadurecimento e o crescimento desta personagem são nítidos, acontecendo estes nos momentos exatos. Nawi é rebelde e intensa, sendo a representação de algo maior.

As Agojie, quando cativas, são ordenadas a cortarem a própria garganta para não ficarem à mercê do inimigo que as capture. Porém, mesmo perante esta ordem, a jovem Nawi, enjaulada com as suas companheiras não aceita o seu destino e exclama “We will relentlessly fight!” (“Lutaremos implacavelmente!”). Esta jovem é uma força ainda maior que a geração anterior, pronta a aceitar a sua natureza emocional e a combiná-la com a sua personalidade inquebrável. Uma guerreira, porém, sem medo do amor.
É bastante provável que este filme abra caminho a uma grande carreira e leve Mbedu a mais papéis com o mesmo grau de complexidade e provocação que causou em “The Woman King”. Pois é isso que sentimos com esta personagem – uma provocação direta a tudo o que era regra, não com a intenção de desrespeitar mas sim com o intuito de provocar reações, de acordar e inquietar.
A própria postura das Agojie é isso mesmo – inquietante. Uma das tribos inimigas chega mesmo a insinuar que Dahomey teria homens tão fracos que manda as suas mulheres para a guerra, isto por não conseguirem admitir a derrota perante o sexo feminino. Mesmo as cenas de confronto são diferentes das típicas lutas vistas em filmes semelhantes; aqui, numa batalha, o que reina é a agilidade, a astúcia, a inteligência das Agojie que não lutam de forma típica e bruta como os homens, mas sim com movimentos rápidos, imprevisíveis e certeiros. Os confrontos quase parecem uma dança fatal ensaiada, na qual a mulher guia o homem que parece ter dois pés esquerdos.

Para além de uma história impressionante, de papéis e representações assustadoramente boas em conjunto com cenas visualmente muito bem conseguidas, a música e a dança tornam-se mais dois poderes das mulheres. É ao dançarem e entoarem os cantos da tribo que estas se soltam e se unem. São momentos de uma liberdade bela e profunda, como que com a intenção de ganhar força para derrotar quem quer que se atravessasse no seu caminho. A energia sentida nestes momentos é indescritivelmente pura. A banda sonora é épica, audaz e emocionante, sendo o elo perfeito para os momentos onde as palavras não são suficientes.
Só vendo é que se sabe. Só estando sentado, de olhos arregalados presos na tela, com os ouvidos perdidos nos sons, é que podemos sentir a magia que “The Woman King” vai disparar contra nós. Eu digo disparar porque é bruto, caótico, doloroso até, mas de uma forma terapêutica quase, forma essa que nos deixa leves e de coração cheio.
Mais uma vez, nunca no grande ecrã se viu tamanho poder junto. “The Woman King” é uma pérola cinematográfica dos últimos anos. Um filme para acordar multidões, para despertar consciências adormecidas, para fazer os negreiros, os traficantes de escravos, os homens tiranos darem voltas nos seus túmulos e sentirem o eco destas mulheres audazes, poderosas, demasiado grandes para qualquer ecrã.
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