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Se a doença mental é assunto tabu na sociedade atual, que dizer da sua representação nos meios de entretenimento? Se pode ser argumentado que na literatura e no cinema, meios mais maduros, esta temática tem alguma presença, na grande maioria das vezes é feita através de perspetivas estereotipadas. Não é raro que, seja em que meio de entretenimento for, a personagem com algum tipo de doença do foro mental seja violenta e imprevisível, algo que até contrasta com grande parte das verdadeiras perturbações desta natureza.

É, por isso, extremamente edificante experienciar videojogos como “Hellblade: Senua’s Sacrifice”, por este ter a capacidade de, ao mesmo tempo, quebrar o estigma associado às doenças mentais, bem como construir uma história que acaba por ser inspiradora para quem esteja na mesma situação. O jogo foi criado pela pequena equipa (de cerca de 20 desenvolvedores) do estúdio independente Ninja Theory, num trabalho que contou com a participação de vários psicólogos e especialistas em saúde mental para garantir que o retrato de Senua, a protagonista do jogo, fosse o mais fiável possível.

Senua – protagonista de “Hellblade: Senua’s Sacrifice”

Numa história que mistura os géneros mais abrangentes de ação e aventura, mas também fantasia, thriller e elementos de terror psicológico, a narrativa acontece em território Celta, por volta do século VIII. A protagonista Senua encontra-se numa jornada para salvar a alma do seu amante Dillion, assassinado como sacrifício aos deuses durante uma invasão Viking. Senua entende que a única maneira de salvar Dillion é recuperar a sua alma que foi oferecida aos deuses nórdicos, tendo para isso que encontrar Hela, a deusa nórdica que governa Hel, o Reino dos Mortos.

Senua sofre de um grave caso de psicose, que a faz ouvir vozes na sua cabeça. O jogo arranja uma forma interessante de tornar esta característica imersiva, dado que é usada uma tecnologia de áudio binaural em três dimensões para todos os diálogos e sons ambiente, permitindo sentir estas vozes em diferentes espaços físicos, que contribuem para uma ligação emocional com o estado mental de Senua. Adicionalmente, uma das vozes funciona como narrador da história, consciente da presença do jogador, algo que permite alguns necessários momentos expositivos ou quebras da quarta parede que adicionam algum efeito dramático.

Para ultrapassar os seus obstáculos, Senua usa como guia as memórias do espírito de Druth, um antigo escravo dos nórdicos e conhecedor da sua mitologia. O espírito de Druth, que Senua encontra no início da sua jornada, ajuda-a a perceber que desafios terá que ultrapassar para entrar em Hel, fornecendo também pequenas curiosidades da mitologia nórdica, que servem para ajudar jogadores menos versados nestes mitos a perceberem o seu contexto.

As alucinações de Senua por vezes traduzem-se em flashbacks, que acabam por fornecer alguma história de fundo da protagonista, ainda que de forma não-linear. Estes pequenos delírios dão a conhecer algum contexto da sua história familiar, nomeadamente a sua mãe Galena, que sofria da mesma ‘maldição’ de Senua, e o seu pai Zynbel, uma figura abusiva e maligna.

O objetivo de Senua é salvar a alma do seu amante Dillion da deusa Hela

Além dos atributos cinemáticos do jogo, este divide-se sobretudo em dois tipos de jogabilidade. Em diversos momentos, Senua necessita de explorar as redondezas para encontrar a próxima localização, de forma a poder avançar na sua jornada. Tipicamente, nestes momentos o jogador pode percorrer o ambiente à sua vontade, necessitando de resolver algum tipo de enigma ou desafio para poder progredir. Estes puzzles estão diretamente relacionados com a capacidade de Senua olhar para o mundo de forma diferente, permitindo-lhe, por exemplo, detetar caracteres rúnicos no ambiente ou até modificar a estrutura de algumas construções, como pontes ou escadas.

“Hellblade” possui também esporádicos momentos de combate, onde Senua tem que derrotar espíritos dos guerreiros Vikings ou, ocasionalmente, boss fights contra divindades nórdicas. O combate poderá ser um fator ‘desmancha prazeres’ para jogadores versados em jogos focados neste elemento de jogabilidade, por ser relativamente simplista e com pouca variedade. Ainda assim, o jogo consegue compensar essa simplicidade com vários momentos de tensão e um par de interessantes batalhas, ainda que tente sempre deixar patente a ideia de que o combate é um elemento secundário do jogo.

Parte dessa tensão é criada por um dos elementos mais controversos do jogo. Logo no início, na primeira vez que Senua tem que combater com um espírito, as Trevas que acompanham a personagem dizem-lhe que de cada vez que esta ‘morre’ (o jogo acaba por tornar as mortes visões de futuros possíveis), um apodrecimento irá espalhar-se pelo seu corpo, até chegar à sua cabeça e consumir a alma, tornando implícito que, caso o jogador morra demasiadas vezes, todo o seu progresso será perdido. Esta mecânica de morte permanente (permadeath) acabou por ser posteriormente desmistificada como um bluff da equipa criativa, que pretendia comunicar a ideia de medo associada à psicose e a outras doenças mentais.

Os puzzles do jogo estão relacionados com a capacidade de Senua em encontrar padrões ocultos na Natureza

Não sendo um jogo perfeito, “Hellblade” consegue transmitir uma história com ideias sólidas e relevantes, aliadas a uma excelente apresentação (rara para jogos criados por uma equipa tão escassa), incluindo vários domínios, como sons, gráficos, voice acting e banda sonora. Para se elevar a um patamar superior, a jogabilidade merecia que alguns puzzles fossem mais polidos e desenvolvidos, e que o combate fosse ligeiramente refinado, pois, por exemplo, obriga a que o jogador tenha sempre a câmara fixa num dos inimigos, algo que impede a noção dos inimigos que estão nas costas da personagem.

Para terminar o texto, e na falta de palavras mais originais, vale a pena destacar uma das ideias de Tameem Antoniades, diretor de “Hellblade”, que está presente no pequeno filme que vem incluído com o jogo e que mostra imagens do seu processo de desenvolvimento. Num dos trechos finais, Antoniades sumariza na perfeição uma das mensagens core do jogo:

As doenças mentais já estão connosco desde que o ser humano habita o planeta. Mas porque será que a evolução não erradicou esta fraqueza do nosso património genético? Sempre me fiz esta pergunta, até que percebi que a questão tem uma falha inerente. Ela assume que ser diferente e pensar de forma diferente é uma fraqueza.

A única razão pela qual temos computadores, naves espaciais, medicina, poesia, arte, e até videojogos, é porque somos capazes de simular realidades abstratas na nossa mente e partilhá-las com o resto do mundo. Precisamos de pessoas com a capacidade de ver as coisas de forma diferente para podermos progredir e sobreviver como sociedade, e precisamos de estar abertos para estas novas formas de olhar para as coisas.

Disponível em: Nintendo Switch, PS4, Windows, Xbox One, Xbox Series X|S

Luís Ferreira

Rating: 3 out of 4.

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