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“– O senhor é um homem que divaga, que não argumenta, e que não diz coisa com coisa! Tem olhos e não quer ver; tem ouvidos e não quer ouvir: pois não compreende, não lhe entra nessa cabeça de abóbora que um povo ignorante, como o nosso, ainda está muito longe de achar-se habilitado para cumprir a missão difícil e espinhosa que compete aos jurados?… O Brasil está muito atrasado, meu velho doido; o júri é uma coisa muito sublime para esta terra de caboclos, meu liberalão das dúzias!”


“A Carteira De Meu Tio”

Teatrólogo, jornalista, político, professor, médico e memorialista, Joaquim Manoel de Macedo (1820-1882) foi nublado pelo talento mediático de Machado de Assis, mas claro, tem o seu valor. Homem multitarefa, dizem que enquanto lecionava aproveitava os momentos em que os alunos faziam os seus exames para corrigir provas dos seus livros. E um deles que me caiu às mãos foi “A Carteira De Meu Tio” (Editora Garnier, 2001, 126 páginas). A história é bastante engraçada.

Um sobrinho vive às custas do tio e ao invés de se estar a ilustrar na Europa, leva uma vida desregrada no Velho Continente e é um contumaz mentiroso. Quando retorna ao Brasil, o parente tem planos grandiosos para ele, mas programa uma excursão onde ele teria que viajar no lombo de uma égua para conhecer o Brasil de verdade. A guisa de charada, fornece ao rapaz dois livros, um dos quais o denomina “a defunta”. Que nada mais é que a Constituição Brasileira que vigorava à época.

O escritor romântico nascido no Rio de Janeiro, Joaquim Manuel de Macedo

Espécie de código de leis que todos sabem, mas que não cumprem, essa triste ironia penso ser o fio condutor de várias Constituições mundo afora, especificamente aqui no Brasil denominamos jocosamente de “leis para inglês ver”. A outra caderneta é a alusão ao título da obra, para que ele escreva as suas impressões sobre os ocorridos no percurso. Aí começam as aventuras e desventuras do jovem rapaz, que recebe a companhia de um Sancho Pança de nome Paciência.

Este o contradiz em quase tudo, faz-lhe estender os caminhos e é mais prudente na hora de revelar as suas preferências: fazendo uma analogia, se está às portas do Estádio do Dragão e é adepto do Benfica, veste a camisola azul e branca e chega a beijar o escudo. Iluminado pelas ideias europeias, mas tolo em relação às questões político-partidárias, o sobrinho indispõe-se com um taberneiro que lhe serve uma comida e vinho intragáveis, fazendo a sua montaria passar fome. Mas basta uma mudança de opinião, para ser tratado com cortesia e disposição. Eterna contenda entre os monarquistas e os liberais.

Sátira acerca do mandatário de uma localidade, que manda atear fogo à casa de um dissidente. Quando o ingénuo questiona o seu companheiro de viagem e a vítima sobre as providências a serem tomadas, reclamar a quem, cara pálida?! O mandatário do lugar faz o papel de delegado e coronel, sendo que a alternativa de aceitar a injustiça é a mais acertada. A carteira vai sendo preenchida e a defunta é mencionada o tempo todo. Transposta para a nossa realidade, é interessante aventarmos o conhecimento real das coisas, daquelas pessoas que se dignam a segurar o boi pelos chifres.

Caricatura de Joaquim Manuel de Macedo a ser consolado pela mascote da revista Semana Illustrada / Wikipedia

A leitura é aprazível, nada profunda, e diverte-nos com passagens hilárias, dentre as quais:

Deseja, por exemplo, o ministério abrandar as iras, ou mesmo dar cor diversa às ideias de uma gazeta que o hostiliza? Muito bem; examina e reconhece o estado financeiro dessa fortaleza, e depois ataca com um vigor proporcional aos meios de defesa que tem de superar;

se veio no conhecimento de que a receita da praça sitiada não chega para as despesas, lança numa formidável bomba o oferecimento de um subsídio misterioso, dado e recebido em segredo, o qual fará desaparecer todos os receios de um déficit (que é bicho muito feio!) e ajunta ao subsídio mais alguns trocos miúdos para sossegar a consciência do terrível adversário: se, pelo contrário, essa lâmpada da imprensa tem óleo suficiente para conservar ativa a sua luz, o ministério trata de apagá-la, afogando a torcida num excesso de azeite: em regra geral, quer num quer noutro caso, a praça acaba rendendo-se à discrição!

Após o término, fico a saber que o término não é o término. Que houve uma continuidade desta história anos mais tarde e espero em breve retomá-la, para saber mais sobre esta caderneta. E claro, soltar boas gargalhadas!

Marcelo Pereira Rodrigues

Rating: 2.5 out of 4.

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