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O rinoceronte é corpulento, cabeça grande, tórax largo. As patas grossas parecem troncos de árvores. A pele enrugada em pregas forma placas, carapaças ósseas. A cauda, com cerdas fortes, limpa as fendas cheias de insetos. O corno de fibras poderia furar o abdómen do adversário. Banha-se na lama e depois, manso, pasta o solo. Abre trilhas no mato. Macho, solitário, territorial.

Nas aulas de francês, líamos juntos a peça “O Rinoceronte“, do romeno Eugène Ionesco (1909-1994), o fundador do chamado Teatro do Absurdo. Era um texto desesperado, burlesco, saído de um espírito anárquico, um clássico. Conta a história de uma cidade pacata que se transforma radicalmente, após a passagem de um rinoceronte por suas ruas. O rinoceronte causa pavor, estranhamento, medo. Depois dele, surgiram outros rinocerontes. As pessoas que conversavam num café tentam entender o inadmissível.

Deveriam chamar as autoridades? Seria um sonho? Um delírio? Os rinocerontes seriam unicórnios? Teriam vindo de África? Da Ásia? As criaturas paquidérmicas proliferam por todos os lados. As personagens vão se transformando uma a uma em rinocerontes. Apenas um casal resiste à tentação, uma espécie de Adão e Eva que dariam continuidade à espécie. Alguém balbucia: “Não me habituo com a vida” e uma voz finaliza: “Eu defender-me-ei contra todo o mundo… Eu sou o último homem. Não me rendo.

O escritor romeno Eugène Ionesco

A peça é uma alegoria. Simboliza o conformismo que gera fantoches manipulados. A banalização do mal diante da apatia, da inércia, da cumplicidade. A adesão à barbárie. A conivência com regimes totalitários, sejam de direita ou de esquerda, que esmagam, que geram um sistema onde não há lugar para a oposição, para o debate, para a liberdade de pensamento.

O rinoceronte poderia ser também uma força estranha, uma epidemia, um vírus submetendo a humanidade impotente a uma sentença de morte. A certeza melancólica de que, mesmo aqueles que foram poupados, irão morrer brevemente de outra forma.

Tão distante o meu tempo de leitora de Monteiro Lobato (1882-1948), em que o rinoceronte era o Quindim. Ele foi adotado pelos habitantes do Sítio do Picapau Amarelo, após fugir de um circo onde sofria maus-tratos. Descoberto pelos besouros da boneca Emília na floresta, logo conquistou todos com carinho. Afugentou os detetives que vieram no seu encalço, chifrou o lobo perverso, afastou o perigo de um ciclone. Andei no seu dorso com Narizinho e Pedrinho até a cerca das “terras novas”, onde foram recebidas as figuras dos contos de fadas. Era tão natural para mim o relato de um rinoceronte desembarcando em Nova Iorque, com focinheira, como uma mascote.

Em que momento a juventude e a infância se perderam? Como aquele ser que mais amei se transformou num animal enorme e monstruoso? Cínico e com instintos baixos? Os seus guinchos de fera reboaram até ao horizonte. Temperamental, agride-me em duelo como se estivesse num ringue. Titã ungulado. Golias atolado no pântano. Vem para cima de mim com o cabo da adaga fincado no crânio. Desafia-me com seu peso e a sua fúria. Quer que eu o olhe nos olhos. Que eu chore. Afronta-me sem piedade. Marca a área com excrementos sujos e vai-se afastando de mim, a água pura. Como foi mesmo que ele virou rinoceronte?

Raquel Naveira

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