OBarrete

Porque A Arte Somos Nós

Por vezes caminhamos na vida com alguns objetivos em mente, mas sem um caminho traçado na nossa cabeça: vamos para onde o mundo – e as nossas intuições – nos diz(em) para ir, crentes de que a realização chegará. Apesar de caminharmos com humildade, isso nem sempre chega para sermos bem-sucedidos: é preciso coragem para mudar conceções, para nos adaptarmos e para aceitarmos crescer ao lado de pessoas que talvez sim, talvez não, sejam melhores que nós. Muitas destas ideias estão expressas em “Midnight Cowboy” (1969), realizado por John Schlesinger – que venceu o Óscar de Melhor Realizador, em 1970, graças a este seu trabalho.

Este é um filme que transcende as convenções da sua época, proporcionando uma visão crua e profunda sobre a solidão, sobre a procura por uma identidade e sobre as ilusões do “sonho americano”. Vencedor (também) do Óscar de Melhor Filme, esta obra destaca-se pela sua abordagem inovadora, combinando elementos de drama, realismo social e toda uma estética quase “experimental”, desafiando, desta forma, as normas do cinema hollywoodiano da década de 1960. Contribuiu – e muito – para o seu impacto cultural e relevância duradoura, o facto desta história retratar com bastante precisão a marginalidade e a fragilidade humana num contexto urbano simplesmente impiedoso.

Joe Buck (Jon Voight)

“Midnight Cowboy” acompanha a jornada de Joe Buck (Jon Voight), um jovem ingénuo do Texas que abandona a sua vida provinciana e parte para Nova Iorque com o objetivo de se tornar num “cowboy da meia-noite”: um prostituto que seduz mulheres ricas. Repleto de otimismo e confiança, Joe acredita piamente que a sua aparência e o seu charme “rústico” farão dele um sucesso na metrópole. No entanto, a realidade da cidade é demasiado “brutal” para ele, levando-o a um completo desamparo, sem dinheiro e com a necessidade de enfrentar a hostilidade de um ambiente que, simplesmente, não corresponde às suas expectativas.

É neste cenário que Joe conhece Enrico “Ratso” Rizzo (Dustin Hoffman), um sem-abrigo vigarista, doente, mas bastante carismático, que se torna no seu improvável amigo. Juntos, formam uma conexão complexa, marcada por dependência mútua, desespero e por alguns momentos de ternura.

Este filme é baseado no romance homónimo de James Leo Herlihy – publicado em 1965 –, que reflete sobre o espírito da contracultura dos anos 60, uma era de profundo questionamento para com as normas sociais e marcada pela rejeição do conformismo. A Nova Iorque retratada é suja, caótica e alienada, servindo como um espelho da desilusão de toda uma geração que olhava para o “sonho americano” como uma promessa vazia. “Midnight Cowboy” foi também um marco pela sua classificação “X” – presente, metaforicamente, na história –, original nos Estados Unidos, devido à sua abordagem a temas como a prostituição, sexualidade ambígua e até mesmo pela sua linguagem explícita.

Esta questão tornou-o num dos símbolos mais fortes da “Nova Hollywood”, um movimento que procurava maior liberdade criativa e maior autenticidade na arte – mas não só. O argumento da obra coube a Waldo Salt, que inclusive levou para casa o Óscar de Melhor Argumento Adaptado, com o filme a totalizar três estatuetas douradas.

Enrico “Ratso” Rizzo (Dustin Hoffman) e Joe (Jon Voight)

De facto, um dos temas mais poderosos e melhor dissecados em “Midnight Cowboy” é o da solidão: Joe e Ratso são figuras marginalizadas, cada um preso na sua própria prisão de frustrações. Joe, com a sua aura de cowboy confiante, esconde um passado traumático, aspeto sugerido por alguns flashbacks durante o filme, que indicam abusos e abandono.

Ratso, por sua vez, é uma pessoa frágil – fisicamente, mas não só –, que vive à margem da sociedade, e que ainda assim tem um sonho grandioso de “escapar” da sua prisão (mental) para a Flórida, (para ele) um paraíso idealizado que representa esperança e redenção. Por todas estas camadas emocionais, a relação entre eles é, sem dúvida, o coração do filme: estamos perante uma amizade improvável, que oferece um vislumbre muito sincero de uma forte conexão no meio de uma atroz desumanização, que se faz sentir diariamente naquela cidade.

Deste ponto de vista, existe claramente um aspeto apontado como crítica: o do sonho americano. Joe acredita que a sua aparência e carisma serão suficientes para o conduzir ao sucesso, mas acaba por descobrir que aquela América urbana não só não recompensa qualquer ingenuidade, como, acima de tudo, explora-a. Mais concretamente, as cenas em que Joe tenta literalmente vender o seu corpo, apenas para acabar por ser rejeitado ou enganado, sublinham toda a crueldade de um sistema que devora os mais vulneráveis.

Ratso, por outro lado, representa todos aqueles que já foram derrotados por esse mesmo sistema, mas que ainda se conseguem agarrar a sonhos (impossíveis). Desta forma, a Flórida, com as suas palmeiras e promessas de calor, é uma metáfora para toda a utopia inatingível que ambos perseguem.

“Midnight Cowboy”

A sexualidade também é abordada de forma ousada para a época: Joe, com o seu estilo cowboy, é frequentemente associado a um símbolo de masculinidade, mas o filme desconstrói essa imagem ao explorar a sua vulnerabilidade e até mesmo a ambiguidade da sua orientação sexual. Cenas como a do encontro com um cliente masculino num cinema, sugerem uma fluidez que desafia as rígidas normas de género da década de 1960. Esta abordagem, embora subtil, foi um tanto ou quanto revolucionária e contribuiu – e muito – para o impacto cultural de “Midnight Cowboy.”

No que diz respeito à realização de Schlesinger, esta é marcada por uma combinação (feliz) de realismo cru e de uma experimentação estilística: Nova Iorque é filmada com uma autenticidade quase documental, capturando a sordidez das ruas e toda a efervescência cultural da cidade. Ao mesmo tempo, ao usar alguns flashbacks fragmentados, uma montagem não-linear e algumas sequências de ordem onírica conseguem refletir a instabilidade do estado psicológico dos nossos protagonistas, em especial de Joe. Já a banda sonora, em particular a icónica música Everybody’s Talkin, de Harry Nilsson, reforça o tom melancólico e a sensação de deslocamento que a obra consegue imprimir.

Sem sombra de dúvidas, as performances de Jon Voight e de Dustin Hoffman são o alicerce emocional deste “Midnight Cowboy”: Voight capta a ingenuidade e vulnerabilidade de Joe com uma autenticidade notável, e Dustin traz-nos uma interpretação notável como Ratso, conseguindo equilibrar cinismo, humor e toda a trágica fragilidade da sua personagem. Além disso, a química entre os dois é bastante palpável, tornando a relação entre Joe e Ratso deveras comovente.

“Midnight Cowboy”

Por tudo isto, mas não só, “Midnight Cowboy” é um marco na história do cinema: como primeiro (e único) filme classificado como “X” a vencer o Óscar de Melhor Filme, desafiou as convenções da indústria e abriu caminho para narrativas mais ousadas e realistas. Deste modo, a sua representação da marginalidade, da pobreza e da sexualidade não-normativa foi inovadora, de tal forma que influenciou filmes como “Taxi Driver” (1976) e “Paris, Texas” (1984).

Mais de cinco décadas após a sua estreia, “Midnight Cowboy” permanece altamente relevante: a solidão urbana, a desilusão resultante de promessas irrealistas de sucesso e a procura por conexão humana são temas universais que ressoam numa era de crescente isolamento social e desigualdade económica. Assim, a amizade entre Joe e Ratso, com uma mistura cinematograficamente bela de esperança e tragédia, é um lembrete da resiliência do espírito humano, mesmo nas circunstâncias mais adversas. No entanto, importa também referir que o filme, em certos momentos, entra num certo território genérico e porventura precisasse nesses períodos de outra pujança no seu ritmo, mas nada que fira a qualidade desta película como um todo.

Em última análise, “Midnight Cowboy” é uma obra que captura a essência da condição humana: a procura por significado num mundo que nega a dignidade dos seus habitantes mais vulneráveis. Assim, é um filme que não oferece respostas fáceis, mas que convida à reflexão sobre o que significa pertencer, sonhar e até mesmo sobreviver. A sua conjugação crua de humor, tragédia e humanidade confirma a sua posição como um clássico atemporal, cuja relevância persiste em desafiar e emocionar novas gerações de espectadores.

Um filme sobre conexões improváveis, sofrimento, resiliência e vontade de sermos seres humanos melhores do que éramos ontem.

Por um cinema feliz.

Tiago Ferreira

Rating: 3 out of 4.

IMDB

Rotten Tomatoes

Leave a Reply

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.

Discover more from OBarrete

Subscribe now to keep reading and get access to the full archive.

Continue reading