Milan Kundera deixou-nos este ano, mais precisamente a 11 de Julho de 2023. Nascido em 1929, o autor do aclamado “A Insustentável Leveza Do Ser” é autor também de “A Brincadeira” (editora Nova Fronteira, 7.ª edição, tradução de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca e Anna Lucia Moojen de Andrada, 402 páginas). O ano do seu lançamento foi 1967.
Mergulhamos na Checoslováquia após o fim da Segunda Grande Guerra, onde o país se transforma num satélite da União Soviética e é sem surpresas que compreendemos que as liberdades individuais passarão a ser tolhidas em nome de um Estado coletivo de bem-estar social e todo aquele blá blá blá característico. Pois a brincadeira em questão é um cartão que Ludvik Jahn envia a Marketa, contendo um chiste contra o comunismo. Assim, ele é interrogado, solenemente expulso do Partido Comunista, com toda a humilhação possível, e acreditem, é expulso da universidade também. Esclareço através desta citação:
“Os estudantes comunistas, no decorrer dos primeiros anos, assumiam quase sozinhos a direção das faculdades, decidindo sobre as nomeações de professores, a reforma do ensino e dos programas“.
Um período de trabalhos forçados numa mina de carvão para expiação e é lá que ele irá ter o seu enlace platónico com Lucie Sebetkova. Mulher misteriosa, tinha por hábito roubar flores do cemitério para agraciar ao seu namorado. Aliás, foi durante uma estadia na sua cidade natal que Kundera ouviu esta história, a qual transpôs brilhantemente para a sua novela. Soldado interno, o nosso protagonista conta com poucas folgas e pretenderá desvirginar o seu amor durante uma noite, cansado já das prostitutas que se entregavam a qualquer um. Kundera promove uma intensa investigação sobre o sexo e o amor, falando-nos dos prazeres da carne e da satisfação da alma e faz-nos ponderar sobre o que e a quem amamos.

Mas o núcleo da novela não se basta aí. Pelo contrário. Num caleidoscópio de grandes personagens, a partir do momento em que nosso Ludvik retorna ao seu torrão, anos após, encontra-se com amigos e conhecidos, sendo um deles Kostka, um cientista que trabalha num hospital e que emprestará o seu apartamento para um encontro amoroso do seu conhecido, a quem mantêm dúbio sentimento: ao mesmo tempo que reconhece que, no passado, Ludvik foi o único a manifestar-se favoravelmente numa acusação sofrida num comité (está aí o comunismo com as suas práticas de caça às bruxas), mas ao revê-lo parecia lembrar-se daquela época conturbada.
O affair do nosso protagonista mais se assemelhará a uma vingança: insinuou-se para Helena, mulher de Zemanek, descrito como um ególatra que vive de aplausos e de uma mulher que o admire incessantemente, ou seja, ele só se consegue enxergar como Narciso no espelho. Á época do trauma, Zemanek bateu o martelo, o que provocou o degredo do nosso protagonista. Helena, jornalista do Partido, tem um casamento de fachada. Vive apenas para conviver com o filho e tem vida angustiada.
Kundera dá um show ao narrar o encontro dos adúlteros, o ódio de Ludvik manifesta-se em bofetadas, prensadas, inesgotável apetite e marcas pelo corpo da fêmea. Sei que hoje o politicamente correto pode discorrer sobre a objetificação da mulher, mas o certo é que ela gosta. Mas esta mostra-se pegajosa após o coito, para incómodo de Ludvik, que só queria saber de gozar, vingar-se e pronto.
Ainda mais que um resquício de ternura se apresenta quando ele, momentos antes, numa barbearia, tem a nítida impressão de que aquela sisuda cabeleireira é Lucie, que fugira dele em tempos passados. Terá a oportunidade de questionar isso a Kostka. Está na cidade durante uma festividade popular, a Cavalgada de Reis e todo esse folclore é explicado e exaltado pelo personagem Jaroslav, eleito Rei e que agora observa com orgulho que o seu filho também será Rei.

Didaticamente, Kundera esclarece-nos sobre o folclore da Morávia em contraposição ao da Boémia (este mais vinculado à atual Alemanha), como se davam as cantigas populares que sobreviveram aos tempos, iniciadas nos castelos e por aqui viajamos nos acordes e nas notas, e isso destoa um pouco da excelência do romance. O que é certo é que o comunismo da época quer preservar este folclore, em detrimento ao capitalismo que, de forma moderna, deseja acabar com todas essas tradições.
Ao longo da trama, perceberemos que Ludvik se depura através de uma terapia. Reconhece o ódio, um ódio morno que manteve desde a sua expulsão, é humilhado ao ser apresentado a Zemanek novamente: ele não mudara nada, enrabichado agora com uma estudante de 22 anos bastante risonha, a Srta. Brozova. Contraponto ao corpo gasto de Helena, é uma humilhação a mais para nosso anti-herói.
Sobre as mulheres, passado e presente se mostram com todas as suas dores. O porquê de Lucie agir como agiu é relatado por Kostka a Ludvik e sentimos pena dessa existência sofrida, vítima de estupros coletivos. A diferença dos dois homens é que o atual cientista entendeu esta mulher na sua totalidade, a partir do momento em que ambos se apaixonaram. Ludvik não teve essa mesma paciência. Jovem ainda, queria o corpo a qualquer preço.
Helena comporta-se no presente como a mulher desesperada. Não bastasse ser humilhada pelo marido, sente-se usada pelo amante e, nada mais lhe resta que um gesto dramático e desesperado: dar cabo da sua vida, sendo que o destino lhe assegurará idas e idas à privada, pois o conteúdo do remédio era laxante. Bom o destino nos ironizar com as suas peças.
Redenção? Certamente! Este final de semana que Ludvik regressou ao seu torrão natal foi importante para reconhecer o quanto estava amargurado através de um silêncio forçado. Convivendo com os seus conterrâneos, reencontra prazer e perdão na vida (a sua e a coletiva) entendendo que, afinal, todos eram personagens de um grande deboche do destino.
Um romance composto por sete partes, entremeando personalidades e revelando um pouco o modo de vida dos checos da década de 1950.
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