O porquinho-da-índia não é suíno, nem veio da Índia. É um roedor, um preá, uma cobaia de laboratório. Veio dos Andes, onde servia para alimentação dos incas e de outras tribos nativas. Os navegadores referiam-se ao continente americano como “Índias Ocidentais”, daí o nome. Foi introduzido na Europa por comerciantes espanhóis e holandeses, após a conquista do Peru. Chegou à Inglaterra da era Tudor. Tornou-se animal de estimação da rainha Elizabeth I, que o afagava no seu colo, entre rendas e colares de pérolas. Famosa a pintura a óleo do século XVI, de um artista flamengo anónimo, retratando três crianças, filhos de uma rica família londrina, elegantemente vestidos, segurando um pintassilgo e um porquinho-da-índia.
Os porquinhos-da-índia parecem tão indefesos. Soltam gritos curtos, resmungos baixos, mas são dóceis e, aos poucos, respondem com amizade e carinhos ao seu manuseio. Seguram pedaços de maçãs e rodopiam como girassóis.

O poeta modernista Manuel Bandeira (1886-1968) conta num poema simples, uma lembrança da sua infância: quando tinha seis anos, idade mágica, ganhou um porquinho-da-índia. Sentia dor no coração porque o bichinho só queria ficar debaixo do fogão. Ele levava-o para a sala, para lugares limpinhos, mas o bichinho não se importava, queria estar debaixo do fogão. Não se importava com nenhum dos cuidados e ternurinhas do menino. O poema conclui com um verso surpreendente: “_ O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada.” Que riqueza essa descoberta!
O porquinho-da-índia foi o primeiro objeto do amor do eu-lírico. Uma conquista difícil, esquiva, de frustração e perda. Uma preparação para os embates futuros. Em “Madrigal tão engraçadinho”, Bandeira volta ao assunto e revela que Teresa é a “coisa mais bonita que viu na vida, inclusive o porquinho-da-índia que lhe deram quando ele tinha seis anos“. Teresa, a musa que o fez voltar no tempo.

Também eu, quando era pequena, ganhei um casal de porquinhos-da-índia, que foram colocados no jardim, em baixo do pé-de-chorão, numa casinha sob as longas folhas do choupo. Logo tiveram uma cria, depois outra e mais outra, formando uma colónia. O meu avô teve a ideia de leva-los para a fazenda. Construiu um cercado grande, com tetos, túneis, celeiros, prédios… muita água, feno, capim, frutas frescas, um verdadeiro paraíso. Eles proliferavam cada vez mais. O crescimento populacional era imenso até que a reprodução foi diminuindo.
Criou-se uma espécie de hierarquia: roedores maiores atacavam os menores, os desgraçados, escorraçados. Os machos entraram em colapso. As fêmeas tornaram-se agressivas, agitadas, com olhos vermelhos, isoladas, não aceitavam amamentar os filhotes. Alguns machos sonolentos e enfraquecidos não se acasalavam mais com as fêmeas, não as protegiam. Só comiam e dormiam, presos na própria existência.
Foi peste? Loucura? Crise de depressão e amargura? Não sei. Eles começaram a devorar-se: pais devoravam filhos, irmãos devoravam irmãos. Às vezes sobrava uma cabeça, um esqueleto, uma pata. Instalou-se uma convulsão social. Um horror.
Uma tarde, quando retornei à fazenda, não encontrei mais a cidade dos porquinhos-da-índia. Tudo estava limpo, varrido, sem sangue, sem gemidos, sem vestígio.
Nunca tive coragem de perguntar nada a ninguém.
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