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Porque A Arte Somos Nós

Jean de La Bruyère (1645-1696) é um advogado e escritor francês que certamente entrou para a História da Filosofia pelas suas máximas reflexivas. Não foi um pensador que propôs um sistema filosófico, mas as suas observações pertinentes acerca dos homens e as suas hipocrisias, renderam-lhe o epíteto de moralista. O seu livro principal é “Caracteres“, que expressa as suas ideias de um asceta que abdicou da carreira de advogado, chegando a ser preceptor de um neto de conde, e tudo o que mais desejava era ter sossego e ficar à margem da sociedade em que viveu.

Certamente, esse afastamento foi responsável por discursos interessantes, e hoje ainda ao ler as suas reflexões, constatamos que independente da época em que se vive, observar a coletividade proporciona material farto para estranhamentos. La Bruyère é um destes filósofos em que uma frase pode ficar a ecoar no nosso cérebro durante dias e dias, e desta forma selecionarei aqui algumas para expormos essa desconcertante filosofia. Espero que se deliciem e leiam o todo da obra, que vale muito à pena, um verdadeiro consolo para estes dias:

A prevenção do povo em favor dos poderosos é tão cega, e a obstinação em lhes admirar os gestos, os retratos, o som da voz e as maneiras tão geral, que, se eles pensassem em ser bons, essa admiração chegaria à idolatria.

O desprezo que sentem os grandes, pelo povo, torna-os indiferentes às lisonjas ou aos louvores que dele recebem, e isto serve de algum modo a temperar-lhes a vaidade; do mesmo modo, os príncipes muito louvados, sem medida e sem descanso, pelos grandes e pelos cortesões, ainda seriam mais vãos se não fosse a pouca estima em que têm aqueles que os louvam.

Os pequenos odeiam-se entre si sempre que se sentem prejudicados uns pelos outros. Os grandes são odiosos, aos pequenos, pelo mal que lhes fazem, e mesmo por todo o bem que deixam de lhes fazer: e assim são responsáveis perante o povo pelo seu obscurantismo, pela sua pobreza, pelo seu infortúnio, ou, pelo menos, aparecem como tal aos olhos do povo.

Se é perigoso meter a mão num negócio suspeito, mais o é ainda fazer-se cúmplice de um poderoso, em negócio dessa espécie; ele escapa, no bom momento, e deixa-vos ficar responsável, duplamente, por vós e por ele.

É pura hipocrisia da parte de um homem de certa elevação não tomar o lugar que lhe é devido e que os outros lhe cedem sem nenhuma dificuldade; nada lhe custa ser modesto e misturar-se com a turba, sabendo que esta lhe vai dar passagem, ou tomar o último lugar numa assembleia quando sabe que vai ser visto e que todos se apressarão em ceder-lhe o melhor lugar. A modéstia é uma prática mais amarga para os homens vulgares que sabem que, quando se metem no meio da multidão, são esmagados por ela; e que quando escolhem um mau lugar é para lá ficarem.

Capa do livro “Caracteres”, escrito pelo filósofo francês Jean de La Bruyère

O tempo, que fortalece as amizades, enfraquece o amor.

Muitas vezes os homens querem amar e não o conseguem; procuram as razões da sua derrota e não a encontram; é que, se ouso exprimir-me assim, são forçados a permanecerem livres.

Sucede, muitas vezes, que se sofre sozinho por extrema delicadeza; mas de ciúme nunca se sofre sozinho, sempre se faz sofrer os outros.

A experiência confirma que a brandura ou indulgência consigo mesmo e a dureza com os outros são um único e mesmo vício.

Certos poetas são sujeitos, no género dramático, à produção de longas tiradas de versos pomposos, que parecem fortes, elevados, e cheios de grandes sentimentos; o povo escuta avidamente, com os olhos no alto, e de boca aberta, crê que essa poesia lhe agrada, e quanto menos entende, mais a admira; não tem tempo nem para respirar, apenas tem tempo para exclamar e aplaudir. Acreditei, outrora, na minha primeira juventude, que essas passagens em verso eram claras e inteligíveis para os atores que se compreendiam entre si e que, com toda a atenção que eu dava à recitação, era minha a culpa se não entendia nada; hoje, porém, estou desenganado a este respeito.

A vida é curta e cheia de aborrecimentos; passamo-la quase toda a desejar o que não temos; adiamos sempre para mais tarde o repouso e a alegria que cada um se promete, para uma idade, muitas vezes, em que já desapareceu o que há de melhor na vida, a saúde e a juventude. Mas chega esse tempo esperado e encontramo-nos ainda com os mesmos desejos: e vem então a doença que toma conta de nós e nos leva; mas, se tivéssemos escapado, seria apenas para continuar a desejar, mais algum tempo.

O homem que se queixa de não ter nascido feliz podia, ao menos, tornar-se feliz compartilhando da felicidade dos seus amigos e das pessoas que lhe são chegadas. É a inveja que não deixa que ele se aproveite deste último recurso.

Basta muitas vezes uma bonita casa que nos chega por herança, um belo cavalo, um bonito cão de que nos tornamos dono, e, menos ainda, uma tapeçaria ou um relógio de sala, para adoçar uma grande dor e para nos fazer sentir menos uma grande perda.

Alimenta-se a esperança de envelhecer, ao mesmo tempo que se teme a velhice; quer isto dizer que se ama a vida e se foge da morte.

As longas doenças parecem estar colocadas entre a vida e a morte, a fim de que a própria morte venha como um alívio, tanto para os que morrem como para os que ficam.

A pena com que os homens veem o mau emprego que fizeram do tempo que já viveram nem sempre os leva a viverem melhor o tempo que ainda lhes resta viver.

Só contam para o homem três acontecimentos: nascer, viver, morrer: ele, porém, não se sente nascer, sofre por ter de morrer e esquece-se de viver.

As crianças não têm passado nem futuro; mas têm o que não sucede connosco, quase nunca: aproveitam e gozam o presente.

Marcelo Pereira Rodrigues

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